terça-feira, 9 de setembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 11

A Elenir tem razão quando diz que a nossa conversa não passa de resmungos. O que ela não percebe é que nosso relacionamento nunca passou de balbucios. Não foi o derrame que tirou as palavras da boca do meu pai, foi sua brutalidade, seu fanatismo, seu horror ao Diabo, mesmo recolhendo todos os dias asas de anjos caídos ou dragões em fúria. Agora parece um louco preso no inferno, um demente juntando peças de um quebra-cabeça inexistente. E seu único companheiro é o pássaro negro, compondo as canções mais tristes do mundo e uma reprodução barata de Noite Estrelada. Eu nunca entendi como um homem bruto feito ele poderia gostar tanto daquele quadro. Mas ele gostava, o tempo passava, e o quadro continuava lá, na varanda, atrás da rede, eu colocava a mão e sentia a folha enrugada de umidade, água dessa chuva fina e estranha que o tempo traz. É como se ele imaginasse que a dor tem aquelas cores. Toda vez que estava calado, sentava naquela rede, com o olhar pro infinito e talvez nem mesmo Deus soubesse o que se passasse pela sua cabeça. Era só eu aparecer e ele resmungava: “Cuidado com as traves que o mundo enfia nos teus olhos”. Pra mim, aquilo parecia ridículo, quem mais do que ele me empesteara os olhos com ciscos, galhos, cinzas e traves? Nunca, antes de sair de casa, eu tinha visto o mundo sem sua lente de pavor e amargura. E ainda hoje escuto os gemidos do pássaro negro, desde que meu pai lhe furou os olhos, ele não se agüenta de tristeza. Havia um imenso abismo entre o mundo e o pássaro. Uma imensa gaiola que jamais seria aberta. Ele era culpado de um crime que não tinha consciência que cometera: “Se teus olhos te fazem pecar, arranque-os”. O rio verde e calmo despenca no meu quarto, são imensas colchas de retalho barato. Tento mergulhar, os olhos me impedem. Olhos de peixe. Carvalhos em vigília.
PS: Aproveito para comunicar meus leitores que tem um ensaio doDaniel Lopes (www.pianistaboxeador21.blogspot.com) intitulado "Um timaço argentino" no Amálgama. Acessem: http://www.amalgama.blog.br/?p=76

23 comentários:

Blood Tears disse...

Quantas vezes não somos prisioneiros dos nossos próprios ideais e nos deixamos ficar mudos, devido à intransigência...

Adorei ler.... Pareceu-me estar a tocar e sentir o quadro...

Blood Kisses

Ana Beatriz Frusca disse...

Prometo ler o teu texto depois com atenção.
Vim aqui comunicar que não comentarei mais trabalho algum na NA, pois me desliguei de lá devido ao fato de term tirado meu irmão klatuu de lá.

Beijos.

guru martins disse...

...bela maneira
de bater de frente
com o passado próximo...

bj

Cristiana Fonseca disse...

Olá Marcia,
Havia um imenso abismo entre o mundo e o pássaro. Uma imensa gaiola que jamais seria aberta.
Magnífico, sou completamente apaixonada pela tua escrita,belíssimo texto.
Obrigada pelas palavras gentis e visita, volte sempre , as portas estão abertas pra te. AHHH adorei tua fotos, você é muito bonita.
Beijos,
Cris

pianistaboxeador21 disse...

Obrigado pela força, gatinha.
Com o amor de sempre.

Dan.

Regular Joe disse...

Seus textos permitem mergulhos introspectivos às regiões equóreas abissais do sub-consciente. Ou ao menos a mim me permitem tais mergulhos.
Adoro vir aqui, e desses ires-e-vires respiro ares frescos e deliciosos.
Beijos!

Letícia disse...

Gosto de textos que já começam assim, com uma frase em retirada. Se bem que é um romance e espero não ter perdido nenhum capítulo. E dessa vez tem Deus e a questão do pecado. Senti mais suavidade nesse texto. Espero que se torne livro.
Bjs...

E valeu por sempre me visitarem, você e o Daniel.
E vou dar uma lida no ensaio.

Se cuida.

O empírico disse...

Um monte de palavrões compostos com palavras bonitas e harmonia...

Agressividade e sutileza andaram juntos por aqui. Gostei.

Cadinho RoCo disse...

Para quem cultiva ameaças a apreensão faz-se meio de v ida.
Cadinho RoCo

Ana Beatriz Frusca disse...

Acabei de ler este caítulo mas estou acompanhando o início pela NA, apesar de ter sáido de lá.
Já sabes que estou adorando acompanhar o passo a passo do Mosaico de Rancores.
à noite, quando eu chegar do meu curso, lerei com atenção o ensaio do Daniel.

Beijos.

Heduardo Kiesse disse...

meu beijão grandão!!!

:-)

Mustafa Şenalp disse...

çok güzel bir site. :)

Regular Joe disse...

Voltei para ler mais uma vez. Não é texto que por inteiro se apreenda num lanço apenas de olhos. Lindo, profundo, cheio de significação.
Beijos, querida!

Luciano Fraga disse...

Márcia,os mesmos "olhos de peixe", como se andróides ou criaturas atormentadas me seguissem todo tempo.Lendo seus textos lembro-me Clarice, contundente, com aquele olhar firme, triste,fixo no nada,apenas a fumaça dos cigarros, fantástico.Parece que arranco um enorme peso das costas ou da consciência, obrigado, sucesso, beijo.

O Profeta disse...

Uma réstia de luz no crepúsculo
Uma súplica presa na brisa
Um caminho sem fim
Pela terra da tua lembrança


Convido-te a ver as cores do diadema da Noiva do Mar


Mágico beijo

JC disse...

Texto profundo, com muito significado, e com uma mensagem.
Beijinhos

Germano Viana Xavier disse...

e agora vê-se o rosto de quem escreve...

abraço, Márcia.

RENATA CORDEIRO disse...

Hj li tudo, querida, e gostei muito. Parabéns. Fico feliz por desistir da idéia de partir, pois muitos me incentivaram a não fechar o Blog, então fico, não sei até quando. O post que fiz hj é ainda maior do que de costume porque no fim o enchi de flores. Que cada qual pegue a sua e a leve de lembrança.
Um abraço,
Renata
wwwrenatacordeiro.blogspot.com

Ingrid Guerra disse...

Fotos? Eba!!! Agora posso dizer que conheço (ou que posso identificar, caso um dia os veja em alguma rua desse mundão afora) o casal mais literário da blogsfera.
Quanto ao romance...tá difícil não lhe fazer perguntas, mas vou me controlar. Não quero perder a graça da descoberta com meus questionamentos tolos. Então, continuo aqui, aguardando os próximo capítulos.
bIG abs.

Rounds disse...

márcia,

você é uma das melhores escritoras do momento. foi uma grande descoberta prá mim.

bj

Ana Beatriz Frusca disse...

Já li o texto da Daniel no outro blogue, e aguardo o 4° capítulo do Mosaico dos Rancores na NA. Se puderes me avisar quando publicares ficaria grata.
Beijos.

Cadinho RoCo disse...

Voltei.
Cadinho RoCo

Ricardo Jung disse...

Tudo somatiza... até a bíblia