sábado, 27 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 26

Nossos corpos disputam espaço com os lençóis. É bom sentir o cheiro, o corpo e o gosto de outro homem. Não pergunto seu nome, ele tampouco, nomes não revelam ninguém, ocultam. Ele prende meus pulsos com uma das mãos e percorre a língua por cada centímetro doloroso e imperfeito do meu corpo. Arrepios e gemidos. Meninos quebrando vidraças. É assim que me vejo. Esqueço as cegueiras e as cataratas do meu mundo. Na escuridão os olhos não são bons companheiros e o caçador precisa apenas de bom faro. Ele solta meus pulsos e aperta com força meus quadris, enquanto sua cabeça e sua boca parecem desejar penetrar no meu íntimo. Um nascimento às avessas. Recôncavos e reentrâncias. Salto por cima do seu corpo. Seu rosto desconhecido me atrai. Ele tem ombros largos. Talvez possa segurar o mundo nas costas. Mas agora isso não importa. Deslizo as mãos pelo seu peito e procuro seu sexo. Encaixes. Percorro montanhas e desertos e não saio do lugar. Tempestades assolam casas. Gozos. Amores em conta-gotas. Muralhas da China dividem a cama. Carnavais fora de época invadem as ruas. Beijos de Arlequim. Pierrôs ensangüentados. Um rio verde e calmo deságua em mim e esconde em seu leito grandes moscas azuis. Colombinas e Judas em desalinho.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 25

Não se precisa mais do que um par de pernas indigestas para ser vítima de um assédio. E esta noite tudo que espero é ser devidamente subtraída. Um jogo de sedução no qual não há damas nem reis nem rainhas, apenas xeque-mate e cavalos mansos que se deixam acariciar. Olhos de cegos julgam meus atos. Oráculos não desvendam meu destino. Mandalas giram como cinzeiros encima da mesa. O garçom se aproxima com passos rápidos e certeiros. Um copo de gim. É o que se pede em filmes americanos. Carrego rancores e disfarço. As máscaras vestem meu rosto e são minhas feições mais verdadeiras. Homens passam e devoram pedaços indesejáveis de mim. Ruminantes. Sinto meu coração pulsar através da minha jugular. Tenho litros de amor a oferecer, mas não posso despejá-los sobre qualquer taça. Corda bamba. Cavalos relincham ao meu redor, ignoro. Um rapaz toca levemente minhas coxas e me convida para dançar. Aceito, sei das suas intenções e elas são exatamente as mesmas que as minhas. Suas mãos deslizam sobre minhas costas e tocam meus quadris. Tremo. Elas são macias e quentes e despertam despudores. Gaivotas galopam meu corpo. Dentes perfeitos mastigam minha carne. Peixes nadam em meu umbigo. Um rio verde e calmo explode dentro de mim. Remos me conduzem. Retalhos são sombras de coisas mortas.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 24

Meu corpo são cavalos arredios e sem freios, são ladeiras esperando precipícios, suicidas à beira do abismo. Meu ventre inchado ferve e eu espero lavas. Imagino a agilidade das mãos de Lúcio me tocando. Acordes e guitarras. Cifras e letras e posições. Lençóis e retalhos e migalhas de amores amanhecidos. Ele não está aqui e meus dedos parecem frágeis demais. Cafés em xícaras de porcelana. A noite está clara e me oferece mundos fáceis de manejar. Tudo está enquadrado em uma foto que não posso ver. O mundo perfeito das idéias. Enquanto ele cria universos, eu vivo entre marionetes sujas, amputadas e mortas. Anões me observam. Penso no sofrimento que não me fez maior nem mais forte, apenas atrofiou meus sonhos. Sinto a quentura da boca do leão que não me devorou. Angústias oferecidas em copo americano, para ser tomada em grandes goles. Esbarro em pessoas, entro. O bar cheira cigarro, bebida, suor e traição. Judas troca sua vida por dez reais e uma tragada. Sento sozinha na primeira mesa que tropeço. Agora espero paciente uma serpente se enrolar feito venda em meus olhos. Rios verdes deságuam no meu sexo. Guardo nas minhas impressões digitais minúsculas pedras vulcânicas. Desejo mãos imperfeitas devorando e corrompendo meus seios.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 23

Serpentes dançam sensuais em seu mundo. Não me sobra nada além de guizos e venenos. Você não foi capaz de me discernir. Eu não sou a comida que eu vomito, nem sou costurada com a mesma linha imprestável dos meus vestidos. Caracóis saem de suas cascas e riem da minha desgraça. Lúcido, você se confunde com seus flashs, com seus brilhos insuportáveis. Tripés. Lentes sujas. A sala agora tem a dimensão de uma fotografia 3 por 4. Os objetos fogem dos meus dedos, calos enormes atrofiam minhas mãos. Não sou Cristo, não tenho chagas, mas minhas feridas sangram com ardor divino. Não tente apalpar o impossível. Deus tentou me alertar, pena que nunca acreditei em ninguém. Cega. As traves incomodam meus olhos. Olhos na testa. Peixes mortos fingindo vigílias. Insulinas e agulhas, jamais aprendi a conviver com elas. Cateteres povoam meus braços. Morro e a morte cheira álcool e éter. Não posso continuar aqui esperando Lúcio voltar. Talvez ele não volte. Talvez tenha encontrado consolo em outros braços, em mundos menos complicados e exigentes. Um lugar onde as luzes penetrem docemente as janelas e haja violetas e gerânios na varanda. Aqui, a luz é vulgar e indecente e os cactos apenas sobrevivem sugando a fresta da minha escuridão. Pequenas cavernas se escondem no porão. Saio e procuro desejos. Sodoma e Gomorra e minhas ruelas estreitas espremendo vértebras. Alguém que possa tocar a minha pele e me causar arrepios. Um rio verde e tempestuoso escorre da minha boca. Mastigo carvalhos e cuspo flores. Minha vida descansa solene à margem.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 22

Escafandros se afogam no aquário da sala. Tento salvar os peixes, embora eles tenham morrido antes do meu nascimento. Mesmo assim seus olhos vítreos ainda me interrogam sobre mistérios que desconheço. Fósseis e lembranças invadem minha boca. Pequenos milagres assolam o mundo. Ressurreições sempre me incomodaram. Os lírios e o lodo. Era comum meu pai comentar dos mortos como se eles pudessem a qualquer momento pisar os pés frios e roxos na soleira da porta ou ligar o rádio e escutar uma canção. Eu não podia acreditar nos mortos, porém os fantasmas esbarram na minha existência, mastigam meus calcanhares. Parece que levei uma surra, meu corpo dói, minha alma dói, nada em mim germina ou nasce, apenas subtrai. Uma matemática incorreta e perversa. Volumes amontoam-se na insensatez dos meus braços. As fotos de Lúcio continuam penduradas no varal, revelando realidades inconjugáveis. Pierrôs e Colombinas numa quarta-feira de cinzas. A morte faz sentido somente para o florista. Caranguejos amanhecem no meu jardim. O esterco e a rosa. Entro e no meu quarto Caim adormece entre os lençóis. Serpentes nadam no rio verde e calmo que brota do meu ventre.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 21

Noites de desespero cego. Cavernas aterrorizam meus sonhos. Permaneço nua e distante. Estátuas de barro, pobres Pietà. Costelas e vísceras de Adão. Meus pés brotam e morrem em pinturas surrealistas. Preciso conter meu choro. As águas rolam e não mudam a direção do vento. Cata-ventos são moinhos sangrentos que escorrem do seu peito. Você não é capaz de mudar o mundo, mas sempre abre fendas nos meus sapatos. Meio-fio, homens abrindo valas e eu carregando os seus mortos, chorando dores que não sinto. Velórios de pequenos crimes. Você parte e me parte em mil. E cada pedaço de mim cavalga em tigres selvagens. Não chego a lugar algum. Os ciúmes e minhas overdoses e meus campos de papoulas devastados. E sua carne crua se misturando à lama e ao lodo de outras carnes. Não posso enxergar, porém sinto o gosto amargo do seu gozo escorrendo indecente em outros seios. Colares de pedras falsas. Jades. Mercúrio e ouro perdidos no mesmo rio verde e insípido. Não posso mergulhar até o fundo. Não posso acreditar na beleza dos corais nem na dureza dos carvalhos. Tampouco posso confiar nos escafandros pendurados nos nossos cabides.