terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 29

Pedras fazem ninhos entre meus rins. Árvores da vida semeadas em terreno pedregoso. Há milhares de histórias inscritas na minha pélvis. Fórceps. Restos mortais de outros homens. E o meu corpo descansa em desafeto. Fetos abortados fora de mim. Felicidades geradas in vitro. As desculpas descansam cínicas em cima da mesa. Poderia cerrar as cortinas e deixar o sol secar a poça que se forma no meu peito, cegar minha vista. Não posso me mover, qualquer passo e esmago as flores ao redor de mim. Fleurs du mal. Rimas raras, versos brancos. Nosso amor é uma estrofe esquecida de acontecer. Poesia marginal em boca burguesa. Fecho o livro, mas as frases não saem da minha cabeça. Você voltou como se nada tivesse acontecido. Pause. A mesma roupa, o mesmo cheiro, os mesmos verbos mal conjugados, a mesma língua... Trezentos e sessenta graus. E para você eu continuo igual, uma equação resolvida, soluções fáceis, números inteiros. E eu me julgo cálculo integral. Rios verdes passaram por mim e não mudaram seu curso. Continuo à margem, contando lírios. Desapego.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 28


Anoitecem cidades dentro de mim. Luzes e carros esmagam meus ossos. Uma pasta vermelha e dolorosa no asfalto. Morros de Emily Brontë não abandonam meus olhos. Revólveres disparam seus gatilhos. Não há como morrer sem se ferir. Sangrias não aliviam minha dor e as sanguessugas não podem ir ao inferno no meu lugar. Balas penetram carnes profanas e desconhecidas. O aço volátil das almas. Meu pai tinha razão: o ciúme é uma coroa coberta de espinhos e não temos a força sagrada de Cristo. Madalenas ressuscitadas procuram abrigo. Fujo. Besouros cobrem as paredes do meu quarto. Zunidos penetram meus ouvidos. Pancadas na nuca. Lúcio não poderia ter voltado, não agora. Meus poros exalam o cheiro de outro homem. Vômitos não curam minha ânsia de mulher vadia. Fenos e grama apodrecem entre os lençóis. Cadáveres dormem na sarjeta, enquanto tento desesperadamente esconder os vestígios da noite anterior. O passado é sujo, nos entrega, uma moeda de duas caras. Sóis de meia-noite rompem minha janela. Eu amo e por amar me corrompo. Sífilis e nascimentos andrógenos. Há algo de imaculado crescendo no meu ventre. Marias e Josés. Rios verdes e aortas. Veia cava, cova no meu peito.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Manhãs em migalhas

Só por hoje
Rasgarei meu peito
E arrancarei flores de vidro,
pássaros de origami e velhas mágoas

Picaretas dançam entre minhas vértebras
E eu toco calma a flauta de MAIAKÓVSKI
Nunca acreditei que gangrenas devorariam meu corpo
Pedaços de sorrisos caem desconexos da minha boca
E eu que imaginei morrer um dia de cada vez – Morte Súbita.

Caminho sobre os muros e observo pipas
Losangos e ilusões em perfeita sintonia
O sol explode amarelo em minha mente
E eu penso: deixa-me tocar os lírios – Só por hoje...

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 27

Sinto-me suja e sozinha. Saíram e esqueceram a luz apagada. Tento vestir minha roupa, ela já não me cabe, o passado é uma casca dura e grossa e difícil de remover, é tinta respingada em cimento. Brotam sobre minha carne púrpura ervas-daninhas que precisam ser expurgadas. O barro de que sou feita não sustenta a ira do meu sangue. Jarros trincados. Péssimos oleiros. Os objetos estão nos seus lugares, mas envelheceram, eu envelheci. Camafeus mal esculpidos. Nunca consegui enxergar direções em bússolas. Tomo um banho, dizem que a água tudo cura, não me curou. Tétanos em meu peito. A chave gira do lado de fora da porta. Sinos apodrecem dentro de mim. Enrolo uma toalha sobre meu corpo. Lúcio se aproxima com um sorriso nos lábios, seus risos de infância. Ignorante da epilepsia e dos demônios que tomaram minha alma, ele me beija. Pinturas de Klint. Eu tinha certeza do seu sumiço e agora ele aparece dono de mim e eu procuro os pedaços que me roubaram. Um furto caro e permitido. Diamantes azuis. Rios encharcam a cama e eu faço amor com a facilidade de quem se deita para o sexo. O sol penetra docemente pela janela e espera à margem da cama.