sábado, 5 de junho de 2010

A matança

“Contradigo a mim mesmo porque sou vasto”
Walt Whitman

Toda manhã tem uma cor leitosa. Desespero. Apesar das buzinas, sou despertado por grunhidos de porcos. O tempo é uma puta despencando filhos de sua vulva raivosa.

O assassino calcula friamente as características de sua vítima. O escolhido observa com olhos humanos e imundos. Seu corpo é devidamente raspado. Do lado de fora, barulho e cachaça. Fugas inúteis no terreiro. Todo quintal termina num abismo. Há uma luta crua entre a pedra e o fio da navalha. Não há rituais, a faca desliza pela carne gorda e branca. Salve o pouco de alma que resta em mim, porque ainda guardo com ternura as noites escuras de menino mau.

Sinto os olhos dele cravados nas minhas vértebras podres. Vastos e piedosos como os olhos dos porcos antes do esquartejamento. A sua bondade sempre me custou caro. Ser pai é viver ruminando a solidão das dores clonadas. A beleza torturante das cerejeiras em flor. Era o que ele dizia. Também costumava crer que a chuva era capaz de vencer as badaladas incessantes de Deus. No fim das contas, as pequenas coisas acabavam por diluir as grandes, como numa regra de infinitas compensações.

Depois da presa debater-se em vão, um corte preciso perfura sua jugular. Lama e sangue espalham-se pelos pés do oponente. O animal continua vivo. Ao redor da mesa, os homens bebem, apenas meu pai mostra-se comovido: “Para com isso, sua pena prolonga a dor do animal!”. No almoço, recusa a carne morta.

Raspado e pendurado. Pago caro pelos meus erros, todos os dias revivo meus homicídios, apunhalo os mesmos inimigos. Ressuscitados a cada amanhecer. Fui coberto como os animais. Aquela baba branca e gosmenta continua despencando das minhas ancas: Las babas del diablo. E no final tudo que me lembro é dos seus olhos de gado penetrando a cela, perversamente generosos, esperando pacientemente para recusar minhas vísceras que serão servidas a pouco.

texto publicado originalmente No Caos e Letras e Cronópios