sexta-feira, 27 de março de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 33

Mais um dia se arrastando entre os retalhos furta-cores da nossa incompreensão. Queria tanto conseguir sorrir com a verdade estampada roxa nos dentes. No entanto, sou alegre apenas entre frestas, palitos e solidões. Meu ventre dói como filmes tristes. Vasculho e arranco fetos. Ninguém merece vingar pra vida. Cobras pendurando as antigas peles em nossos antigos cabides. Inspiro demoradamente e centenas de pregos enferrujados entram e atravancam minhas narinas. Respirar está cada vez mais caro. Parece que nossos mares desembocam em esgotos. Baratas e ratos e traças abrindo trilhas nos lençóis. Roendo as migalhas da nossa tão sonhada felicidade. Gafanhotos devorando homens, a ira abençoada de Deus. A penúltima chuva levou crianças e umedeceu os muros e eles ainda não secaram, rastros de lesmas nos quintais. Queria entender ou mudar os passos desde nosso primeiro encontro. Os sapatos eram novos e incrivelmente confortáveis, agora estão velhos e criam calos, joanetes, olhos de peixe. Ando tropeçando na imagem suja e imperfeita que fez de mim. Eu me enxergo com seus olhos e não gosto do que vejo. Mendigos acariciando cães. Sóis e trovões anoitecem em minhas mãos, enquanto rios atravessam os nós dos meus dedos. Amanheço e manejo a insônia indolente dos dias.

13 comentários:

BAR DO BARDO disse...

Marcia, é mais ou menos assim...

A incompreensão puxa mais para o cinza.

A verdade está no sorriso pálido.

Ninguém é feliz entre frestas, palitos e solidões. Exceto eu, quando leio o seu 'romance'. Os filmes 'b', em contraponto, são tristes como fetos brotando nos lixões.

As minhas vestes possuem a estampa das víboras, mas o veneno já me era das origens.

"De bom aço não se faz bom prego" - um amigo me proverbiou isso.

Só gosto de respirar quando corro.

Os bichos me abocanham os calcanhares - e eu me delicio...

A ira de Deus abençoa Satanás.

O rastro melecoso das lesmas é o mapa para Eldorado.

Estou só no meio, sei. Mas já findo.

Beijo.

Adriana Godoy disse...

Márcia, esse texto surpreende pelas inúmeras imagens que possibilitam uma leitura complexa.
"Eu me enxergo com seus olhos e não gosto do que vejo". Cada pedacinho desse mosaico é uma faca afiada que penetra a carne e o espírito. Excelente, belo, pungente.
Beijo.

Gabriela Galvão disse...

E eu fico feliz qd esta janela se abre, Márcia.

Bisous

Ariane Rodrigues disse...

Olá Márcia!

Quero agradecer o comentário na entrevista e a visita no blog! Seja sempre bem vinda!

Sobre o teu blog... Que surpresa! Que forte encontrar Frida com suas cores, com suas dores... Um resultado incrível que dialoga bem com teus escritos. Me apaixonei.

Abraços fraternos!

Ariane Rodrigues disse...

Ahh, esqueci de comentar também sobre o Magritte, que nessa tela mostra bem a sua concepção de universo ou natureza em que tudo se está incluído e imbricadamente ligado, ou diria eu, também os contrários estão miscíveis o bastante para afetarem um ao outro. E teu texto mostra bem isso. Beijo!

Luciano Fraga disse...

Super atual, cruel como o momento que vivemos, no entanto com momentos e imagens belas como " um mendigo acariciando um cão", sempre um prazer a leitura de seus textos, beijo.

Arábica disse...

Escrita de sofrimento?



Abraço com carinho, Marcinha.

JC disse...

Sim, há medida que vão destruindo o planeta, abatendo a floresta, sem a replantarem à mesma velocidade, os esgotos desembocam no mar sem ser tratados; o mundo e as pessoas que nele habitam não cumprem as leis, não cumprem a ordem, apenas olham para si e para o seu bem estar, não se preocupando com os outros. Outros que passam fome, que passam sede,que não têm as condições básicas e saúde, que não têm ropupa para vestir, que não vão à escola, que não têm instrução.
Para onde caminhamos?
Beijinhos

Arábica disse...

O mundo é um revolto mar de cabeças sem corpo e de corpos sem cabeça, metaforicamente falando do desiquilibrio anoitecido onde nos movemos.


E os girassóis viraram cataventos em busca da origem do dia.

Um beijo

Marisa Prado Lopes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Beatriz disse...

Gostei do conto. Gostei do olhar e do olho que olhou de volta e viu o que era, até então, invisível.

Tropeçar, mancar não é pecado quando se é capaz de amanhecer e administrar a insônia.

Bacana

Luciano Fraga disse...

Márcia,brilhante sua entrevista, digna das grandes escritoras deste país,serenidade e postura, adorei mesmo. Obrigado também pelas lembranças(Braga e Luciano), saiba fiquei muito honrado ,beijo fraternal.

Braga e Poesia disse...

marcia estou sem tempo e sem computador e só agora pude olhar o seu blog e ler a sua linda e profunda escrita, esse texto me marcou. a sua forma de escrever cria uma atmosfera pesa onde a dor não somente se faz presente mas a vida diz que quer viver e a dor tem que aceitar a presença forte do lutar por tudo aquilo que se quer mesmo com a dor. e luciano me falou de uma entrevista eu nãi li mas agradeço muito a sua lembrança.
é isso marcia, vamos aprendendo a viver com e apesar da dor e de todas as dificuldades encontradas nesta estrada.