sábado, 6 de março de 2010

Campos ceifados


“Não há falta na ausência. / A ausência é um estar em mim. / E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços (...)”.
Carlos Drummond de Andrade

O rio é um mar pequeno, infinito e tenebroso. Cavalos marinhos devorando submarinos de todas as cores e mastigando cadáveres frescos. Carvalhos sentimentais. Cardumes de olhos me olham. Espiões. Peixes esperando serem fisgados.

Relembrar é estranho... É viver duplamente o que deveria ser subtraído da memória. Reencarnações. Engulo estranhas pílulas brancas. Não se compra a paz. A sanidade num frasco de vidro. Medley. Duzentos anos para decompor. Tarja preta.
O divã é um culto intelectual às emoções mortas. Lazaro e suas roupas em farrapos.
- O que você está sentindo?
Moscas mortas. É o que eu vejo toda vez que fecho os olhos. O perolado das moscas mortas. Varejeiras.
- Conte mais. O que mais você vê?
Redes resgatando enguias. Cristo mergulhado em ódio e silêncio. Sinestesias. Mantos revestindo pedras. Sanguessugas cobrindo meu corpo.
- E a sua infância? Qual o cheiro da sua infância?
Vísceras frescas. Leitos. Vidas submersas. Chuvas e escombros de janeiro. Velas queimando sobre carne. Diálogos escorregando entre os vãos obscuro da portas.
- E a morte? Você tem medo da morte?
Não. Penso na morte como números cabalísticos. Inevitável. Roda da fortuna.
- A morte não te surpreende?
A morte, algumas vezes, não é surpreendente. Não chega feito um batedor de carteiras. Vem mansa e certa, como a correnteza... Como uivos em noite de lua plena. Como o suicídio previsível dos desesperados.
- E a sua mãe, gostaria de falar dela?
A minha mãe estava na beira do rio comigo no colo, não me recordo nitidamente, acho que meu irmão brincava um pouco mais distante, aí então...
- pode continuar.
... foi então que ela perdeu os sentidos, a vida perdeu o sentido. Eu puxei-a pelos cabelos e gritei, gritei, gritei, mas a correnteza foi levando, levando... Ainda sinto seus cabelos escorregando entre meus dedos finos e enrugados, sua vida se tornando fluida e transparente.

Era um aquário, depois virou rio, depois virou mar.
- E o mar?
O mar é apenas um rio grande, infinito e tenebroso. Tão somente... Campos ceifados.

14 comentários:

Adriana Godoy disse...

Oi, Márcia, depois de longa ausência, vc nos presenteia com um conto tão intenso e belo como os campos ceifados, como o rio correndo pro mar. Não suma por muito tempo. Beijo.

Gabriela Galvão disse...

Brigada, Márcia. Q sua intensidade ñ seja ceifada.

lisa disse...

"O divã é um culto intelectual às emoções mortas."

e as vezes elas ressuscitam e tomam formas monstruosas e temos apenas a opção de integrar essas novas criaturas no cotidiano.

esse texto é puro divã.

Furlan disse...

A vida pode não valer um conto, mas há contos que valem uma vida. E por falar em vida, que vida, que vida intensa e exuberante há em você! Ainda quando fale em morte.
Ora, ora, ora... pensando bem, que é a morte, senão "obverse" da própria vida?
Adoro seus contos, adoro.

Parreira disse...

O mar, a morte, o inferno que é a lembrança.
Dizer o que sobre este conto?
Vc tem o dom de fazer vir à tona aquilo que a gente quer guardado lá no fundo.
Prosa-lâmina a sua.


Beijus!

Felicidade Clandestina disse...

nosssa... que texto é esse?

uma verdadeira viagem... sem palavras para ele.


quanta intensidade nessas palavras.





beijos minha querida :)

Braga e Poesia disse...

cinema.tomadas.roteiro infraveneno.
Marcia a pontuação deste texto o transforma e faz ali nas curvas do tempo o correr entre os dedos a vida com suas falsas paradas e correntes sufocando engolindo lá nos miudos da memoria.
grandioso.

Iara disse...

Márcia, sua escrita continua afiadíssima! Sorte nossa!
Vim para lhe sugerir uma visita em http://wiskowcontos.blogspot.com/. Talvez vc goste!

O Neto do Herculano disse...

Belas imagens neste texto, o mar é mesmo um rio grande (do norte).

Luciano disse...

Que delícia de conto. Aqui, ainda sem palavras que consigam expressar todo o encantamento da experiência literária que tu me proporcionas.
Bj Marcinha.

Rounds disse...

grande texto. próprio de quem tem talento raro para a escrita.

bj

Assis de Mello disse...

Muito bom, Márcia !!!
Quantos coelhos brancos saem de sua cartola !!!
Beijãoooo,
Chico

Sueli Maia (Mai) disse...

O grande assombro foi perceber-me com o teu texto que ressuscita a lembrança de que reencarnamos inúmeras vezes numa só existência.
Pior que a ceifa são as escolhas reincidentes e vãs.

E o divã é um ressurgir dos mortos e eles vivem...

Bárbaro este texto, Márcia.
bjo

Fanzine Episódio Cultural disse...

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