terça-feira, 28 de abril de 2009

Calibre 12

“A culpa é do hipócrita (... ) que atira a pedra e esconde a mão.”
Documentário Estamira


Giro o tambor. Conto até seis e escuto o clique. Miro num labirinto colado na porta do quarto. Olho e disparo. Não foi dessa vez. Atiro num pardal, nessa cidade os pardais se multiplicam a cada dia, parece uma febre, uma epidemia. Eles balançam as cabeças e aceitam as balas com a mesma naturalidade e cortesia que agradecem pelas migalhas. Existem pessoas que admiram o voo libertino das aves, eu prefiro seus velórios humildes nas sarjetas.
Pego um bloco em cima da escrivaninha e verifico alguns nomes. A pia está cheia de louça, a cafeteira quebrou e meu estômago está colado nas costas. Mastigo um pão amanhecido e saio. O trabalho espera.

Giro em frente ao espelho. Conto quantas rugas nasceram desde que nos casamos. Miro meu corpo. A silhueta continua a mesma, a não ser por uma pequena saliência na região do abdômen, nada muito perceptível. Atiro uma pequena bola de tênis no cachorro, ele corre, dá voltas sobre o seu corpo e em seguida lambe minhas mãos. Fidelidade canina. Eu me intrigo com os cães que tentam devorar o próprio rabo. Ele ainda dorme, mas parece permanecer em eterna vigília, observando tragédias com o canto imundo dos olhos. Alguns pelos grisalhos cobrem seu peito. Meu Deus, conceda a esse homem um coração de carne, cansei de ruminar pedras e de quebrar picaretas.
Penteio o cabelo, coloco os sapatos e saio. A vida espera. Centrífuga.

Nosso encontro aconteceu ao acaso, eu sei que algumas pessoas não acreditam nisso, não sou uma delas. Estava sentada num café, como faço todas as manhãs, há tempo não me sinto mais à vontade em casa. A colher caiu da minha mão e ele gentilmente se abaixou e pegou. Começamos a conversar e foi necessário pouco mais de meia hora para percebermos o quanto tínhamos em comum. Depois disso não é necessário contar, aconteceu o previsível. Ele tinha o mesmo sorriso do Felipe antes do casamento. Eu fechava os olhos e podia jurar que o tempo regressara, era Felipe ali comigo, devorando meus mistérios, sorvendo cada pedaço insípido de mim.

Ela jamais desconfiou de nada. Romântica demais, sonhava com amores que salvam e não retalham. Não posso negar que ela mexeu comigo e que, talvez, em outra situação até me deixasse levar. Mas eu estava ali a trabalho, e eu respeito meu trabalho. O trabalho dignifica o homem, não é o que dizem? Admito que me custou caro fazer o que fiz. Não tinha outra escolha, eu era funcionário do seu marido, temporário, mas era. Daria tudo para tocá-la novamente. Seus cabelos longos e ruivos, a boca...
Vendo seus olhos. Giro o tambor. Conto até seis e escuto o clique.
Olho o seu corpo inerte, um mar vermelho explode em mim. Sublimo. Um espelho branco me espera no banheiro. No lugar das lágrimas, o pó.

No céu, os últimos pardais sustentam o poente, enquanto cães famintos devoram o próprio rabo.

16 comentários:

pianistaboxeador21 disse...

Volto pra comentar com mais calma.

Beijo.

Daniel

Adriana Riess Karnal disse...

Márcia, que bela descrição que vc faz, consigo formar as imagens muito claramente.A forma tbm está coerente com o texto, na escolha das palavras e no tom q vc usa...parabéns!

Luciano disse...

Só tenho de dizer: obrigado por mais esse post brilhante.
Beijão querida.

Rounds disse...

bala na testa ao som da sinfonia dos pardais.

bj

Arábica disse...

Marcinha,

gostei imenso!

Um dos melhores.

Escrita devorada om calma, dando a cada momento um verbo e um tempo.


Deixando o verbo tomar conta do parágrafo.

Desejo-te um bom fim de semana,

beijos e meu carinho.

Braga e Poesia disse...

cães famintos devoram os proprios rabos.
marcia esses cães serão sempre os homens mesno que sejam os cães.
que texto corajoso e polemico, mas de uma polemica particular, interior.

Assis de Mello disse...

Você é brilhante, Márcia.
O cão-uroboro parece querer nos mostrar que há um grande ciclo de coisas das quais não se pode fugir.
Um beijo,

Chico

P.S.- Será que o Willer te escreveu ? Certamente vc está nos contatos dele)

Adriana Godoy disse...

Márcia, texto lindamente trágico, imagens instigantes, uma overdose de sentimentos.

"No céu, os últimos pardais sustentam o poente, enquanto cães famintos devoram o próprio rabo."
Pô, que beleza!

PS: acabo de ler o poema que Assis de Mello dedicou a nós duas, legal compartilhar isso com você. Beijo.

Luciano Fraga disse...

Márcia,"era uma vez um tempo de pardais, de verde nos quintais, quando ainda havia fadas..." Todo o contexto é o roteiro de um filme,a sequência instigante e o final é reflexo das mentes ordinárias,"cachorro tentando morder o próprio rabo",surpreendente como sempre, beijo.

pianistaboxeador21 disse...

Êta danada! Pelo que escreve dá procês, leitores,perceberem quem é que manda lá em casa.
A`s vezes é difícil ter ambições literárias e ser casado com uma escritora assim.
Fico feliz,mas dói.

Separei este trecho Marcita, pq é foda:

Ela jamais desconfiou de nada. Romântica demais, sonhava com amores que salvam e não retalham.

Beijão.

JC disse...

Mais um texto brilhante Marcia. As coparações, as descrições que fases transportam-nos para um mundo não muito distante do real.
Senão mesmo parecido.
Beijinhos

f@ disse...

Olá Marci,...


mtoooooo b e l o...
gosto desse céu de asas a sustentar o poente... mesmo dos latidos dos cães atrás de sua própria cauda...


mto bom..

beijinhos

BAR DO BARDO disse...

ai! mais folhetinesco impossível... é romance meio às avessas da "série noir"... parece o encontro de si mesma(o)... o sangue tem a liga da humanidade... ou tudo não passa de mil e uma noites de sonho?

márcia, pô!

isso é um labirinto perigoso...

felicidades.

- henrique pimenta

RENATA CORDEIRO disse...

Olá, Márcia,
como vai? Vejo que continua escrevendo muito. Isolei-me no meu canto, e agora tenho 10 Blogs, mas vou fechar dois por motivos de saúde.
Fique feliz ao ver que mantém a minha Galeria na sua lista de Blogs.
Gostaria que vc visitasse o que mais faz sucesso no momento, o FEMININA:
http://blogrenatafeminina.blogspot.com
São posts curtos e faço várias postagens por dia.
Apareça, venha tomar um chá comigo.
Continue firme na escrita, pois é ótima.
Beijos,
Renata

Vanessa Anacleto disse...

Márcia, saudades de ler por aqui. Estive enrolada com as atividades do Fio. Mas agora volto a ler os amigos como merecem.

bjs

Devir disse...

Na primeira linha
arrepiou
dentro de mim
o mais passado dos bobos
pulou e gritou
è ela é ela é ela
a mulher de depois
do fim dos tempos

Depois mais tres sentenças
um bobo quase recente
gritou: volta para seu lugar
isso é uma questão de vida

Outro bobo dos meus vinte anos
coçou a barba sempre por fazer
ajeitou aquilo sem dó aos pardais

Então continuei
que seja o último bobo
encontrando mais e mais
o coração que dizem
que um homem também tem
para se diferenciar
daquele que só tem rabo
a sustentar fome canina
ou conexão proboscídeas

Assim se passa hora e meia
cabelo em pé no giro do tambor
enfim o som clique se ouve
ao costume de minha literatura
o mar vermelho se abrindo
a salvação as pessoas passando
passando em lágrimas sou só pó
porque ao final não sei ser mais

Aquele abraço