domingo, 10 de maio de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 35

Saio e o asfalto engole o resto de vida dos meus sapatos. Eles enxergam o que jamais serei capaz de sonhar em ver. Eles pisam em cima daquilo que penso entender. Choro, pois não posso esconder minha cegueira atrás de óculos escuros. Sons metálicos me invadem e domam meus ouvidos. É o bater de asas das grandes e covardes moscas azuis. Meus dedos sangram e me condenam. Lâminas e crucifixos. Não há crimes perfeitos, todos sabem disso, mas eu sempre ignorei as grandes verdades, elas me pareciam com os rótulos enganosos e com as fórmulas fáceis. Eu levanto com dificuldade e caio em minha própria merda. Tento me consolar lembrando do cheiro do café da minha mãe preenchendo tudo, mas logo vem os zunidos, o enxofre, os olhos doces e mortos de Belinha... Meu passado todo em desalinho. Meu corpo costurado, vermelho e cremado. Colcha de retalhos. O vento bate e leva tudo, até o pior de nós, que antes parecia tão inútil e dispensável. Tateio meu corpo e finjo orgasmos. Clitóris e lábios não são suficientes. Gemidos me calcificam. Pedras em coma submergem. Faço dos meus lençóis o leito frágil do meu rio. Não há graça nem louvor nos meus suicídios diários.

14 comentários:

Adriana Godoy disse...

Que beleza, Márcia. Um texto porreta de bom. Vou ler de novo. Beijo.

BAR DO BARDO disse...

Seus sapatos pertencem a uma história de encantamento denominada "Sem-Fim". Suspeito que isso seja bem mais do que mil e uma noites...

JC disse...

Mais um texto excelente.
Meu corpo costurado, vermelho cremado. Frase intensa.
Beijinhos

Braga e Poesia disse...

"Clitóris e lábios não são suficientes."
quando uma mulher diz isso pode-se imaginar onde ela se encontra.
um poema aparentemente desesperador, mas na verdade um poema que encontra a calma no climax do desespero.
surreal, virando o avesso do dia a dia do ser humano, buscando em aparenre loucura a resposta para o ausente e o presente
"Saio e o asfalto engole o resto de vida dos meus sapatos. Eles enxergam o que jamais serei capaz de sonhar em ver"
engole o resto de vida dos meus sapatos me parece como se:
e os meus sapatos! o que tinha ainda um resto de vida na minha ex - vida.
magico e impensavel como tudo que é magico
e acima de tudo realista numa invertida dobra do real, onde o todo interno se contorce ao contato com o mundo exterior.
belo e cruel desgarra a dor e o apresenta não como um trofeu, mas antes como uma fatalidade desta existencia honesta que busca caminhos em estradas tão conhecidas e traiçoeiras.
surreal, magico, belo, realista e acima de tudo necessário.

Arábica disse...

Uma angústia que dilacera num quotidiano de auto destruição.


Até que um dia os sapatos procurem e encontrem novo chão.


E o passado arda.
E os pés, descalços, se libertem.

Um abraço carinhoso

O empírico disse...

Pois que morra em definitivo pra ser ver em ninho de fênix...

Marisa Prado Lopes disse...

:)))
linda!!
bjaooo cunhada!!
Ma'

Assis de Mello disse...

Estou dizendo: essa moça é fera. Quanto mais a leio mais apaixonado fico por sua escrita deslumbrante. Mesmo se eu fosse mulher, não conseguiria fingir os orgasmos nessas leituras.

Luciano Fraga disse...

Márcia, que conjunto,a pintura é um tiro no coração. O texto a bala alojada. O final é o real, manter-se vivo, apesar do suicídio diário, maravilha, abração.

Virgilio Brandao disse...

Marcia, mesmo achando que a vida vale mais do que um conto - vale tudo!, serei, a partir de hoje, um leitor do teu blog, pois vejo que temos coisas belas em comum...

Que a vida, seja para ti (do ponto de vista do nome do teu blog) o Cântico dos Canticos.

Virgílio

f@ disse...

Olá Marcia,

Genial texto e imagem....
Açúcar e sal das palavras...

imenso beijinho

Arábica disse...

Beijos e boa semana!

Rounds disse...

márcia,

ando sumido, é verdade. muito trabalho! falta tempo pra visitar blogs dos amigos.

vejo que seus poemas continuam matadores. ótimo que continuem assim.

bj

Heitor Cardoso disse...

Há um demonio dentro de nós. A leveza do toque desfaz paraisos. O sucesso nao deixa de acompanhar-te, observo.

Minha cara, tenho andado por ai. Sim, ocupadissimo, em suicidios diarios e guerras contra mim mesmo. Uma guerra sem fim. Mas preparo-me entao para voltar. Perdi muita coisa nesses meses, como a beleza da dor em suas palavras. Estou voltando.

Muitos beijos, até.