segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 38


Você jamais me poupou dos detalhes. Uma simples chave em cima do criado-mudo era comentário pra uma semana. Era sua maneira egoísta de me escancarar o mundo. Abrir meus olhos esbranquiçados de não ver. Eu procurava explicações e você me estendia dálias negras e úmidas. Aveludadas e amargas. Por que todos imaginam que flores são doces? Ergo os lençóis e vejo os imensos marimbondos. É preciso mastigar com ternura a singularidade das coisas. Você foi meus olhos, cru e perverso, e isso me incomodava. Enxergar o mundo com suas distorções, com sua visão fraca e pouco viril. Quartos escuros e vidros canelados. Fotos invertidas no varal. Uma poética 3X4. É incoerente encontrar vida na mansidão rouca dos dias. Minha garganta muda, cheia de nós, está envolta em cachecóis. Você tem esse poder de dar dimensões absurdas ao cotidiano, transformar migalhas em pães. Água turva em vinho. E eu presa às urgências. Cão-guia atravessando faróis. Obedecendo a tolice linear do mundo. Túneis desfeitos. Indigentes apodrecendo nos acostamentos. Canibalismos. A morte é um ser louco e pensante. Trituro o troco do entardecer. Escurece depressa. Olhos à espreita. Apalpo minhas costelas e ainda percebo a fúria de Deus no meu corpo. A costela rejeitada. A cegueira não me poupou de enxergar minúcias. Alavancas proporcionam uma falsa impressão de força. Sigo limpando a sujeira do amanhecer, aquela cor rosa esperança que não me recordo mais.

13 comentários:

Devir disse...

E eu não ouso ler capítulos anteriores, por não ser poeta, nem escritor, nem sabido e sequer artista, ou só e só por lutar deveras pelo nada que pode então nos redimir. Fico apenas com este 38 e, mesmo que fosse em imagem de pregado a uma cruz, já esbravejo:
Meu Deus, que porre delicioso!!!

Devir disse...

A vida também não valeu um conto para Alberto Caeiro

Não basta abrir a janela para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; e um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Adriana Godoy disse...

"Você tem esse poder de dar dimensões absurdas ao cotidiano, transformar migalhas em pães." esse texto marca pela intensidade das emoções que desperta. Esse trecho selecionado arrebenta de bom. Posso dizer:gostei muito. Beijo.

Marta disse...

Nossa! Fico sem palavras...
Tenho orgulho de ter presenciado alguns momentos criativos seus.Peço desculpas pelo meu mau jeito...
Beijos

Luciano Fraga disse...

Márcia, "mastigar com ternura a singularidade das coisas" é o cuidado com as emoções pequenas, porém vitais.A rejeição, a falta de voz, a tentativa de soerguimento em vão e uma vida que perdeu o brilho e a cor para quem não "poupou os detalhes",maravilha, beijo terno.

Arábica disse...

Marcinha,


são os detalhes que nos mascaram os olhos de amargura?
São os detalhes que nos adulteram a inocência?

Como sempre, bom ler-te.

Abraço daqui até aí.

Devir disse...

Ow, menina

Pode voce não saber, porque muito menos eu poderia, mas
o passado não é imutável
por isso, por sua beleza e
sutil sabedoria, voce
é fundamental ao nosso devir.

Anônimo disse...

Marcia, a visão desfocada para o lado negativo reflete uma alma em conflito. Se por debaixo dos lençóis existem marimbondos, o que haverá debaixo da cama?
Boa semana! BEijus

Tatyane Diniz disse...

Oieeeeeeee!
Gosto de seus escritos eles tem vida própria! A morte o obscuro e a introspecção isso é bem marcante em seus textos. BELAS IMAGENS!!!
beijos e te add na minha lista de blogs!

TATY

Teoria do Caos disse...

Márcia, foi uma grande alegria conhecer teus textos. Vida longa. Se tiver um tempinho, visita o meu blog? abraço.
Gilson

Assis de Mello disse...

Márcia, obrigado pelo comentário em meu blog. Vindo de você, a coisa fica forte.
Estou me atualizando aqui nas suas postagens sempre magníficas, densas, inquietantes. Seu talento é uma raridade.
Este fim de semana tem um evento poético na casa das rosas, siga o link, depois clique em Agenda >> Hora H : http://www.casadasrosas-sp.org.br/
Talvez eu dê uma passadinha rápida por lá no sábado à noite e no domingo à tarde.
Um beijooo,
Chico

Assis de Mello disse...

Márcia,
Há um presente pra você lá no Coisas do Chico.
Um beijo !!!!
Chico

Devir disse...

Parece Estigma, vigiar o bebê
e odiar tal tarefa de amor dos
outros.

Parece Fraqueza, passar o peixe para mim depois que os olhos se tornam opacos.

Parece Sabedoria, se esforçar tanto para exterminar marimbondos e baleias debaixo da cama.

Parece Salvação, adubar os jardim com esmeros estudados e posar de espantalho sexy ao por do sol.

Márcia, ressaca de ontem fora daqui

Beijo sua ternura