sábado, 4 de setembro de 2010

CAVALOS MORTOS


“Não ponha o sol sobre vosso ressentimento”
Ef 4, 26b

Fechei devagar minhas pálpebras caídas - inveja de todo peixe, e mais uma vez vi um campo fértil, embora solitário. Desde muito cedo aprendi a observar e em todas as faces eu encontrava minúsculas moscas brancas, criadas entre os carvalhos da ignorância humana. Contemplei o medo nos olhos de vidros dos corvos que testemunharam a morte de Van Gogh.
Sentei nu de frente para o horizonte antes da aurora e fiquei imaginando qual seria o gosto daquelas papoulas encarnadas, nascidas tão à margem dos cavalos mortos.

O dia está quente, não tiro a blusa, remexo os bolsos da calça, mas esqueci o que procurava, tento avançar, não é possível, creio que nenhum um homem pode avançar. Somos cães loucos rosnando para o próprio rabo, escorpiões ferroando as próprias cabeças, experimentando a eficácia de seu veneno. E os velhos são como caranguejos, andam para trás e alimentam-se dos defuntos da memória. Sempre veem multidão na solidão oca das coisas.
A velhice exala o odor do estrume – fetos prematuros nascidos da imensidão dos dias. Não se iluda, o tempo não tem aliados, é um sádico nos arrancando, pacientemente, vértebra por vértebra, recordando a falência dos nossos instantes. Ele me fez tão mesquinho, que agora sou um verme roçando a carne verde e indigesta dos cavalos mortos. Cavalgando com serenidade, todas as manhãs (meus cadáveres), esses animais selvagens que já não precisam de selas. Cascos trotando na reminiscência cíclica dos vitrais.

- Você pode me dar uma chance?
- E quantas mais?
- Eu juro que dessa vez eu farei tudo diferente, eu te provarei que posso ser quem nunca fui.
- E o que eu ganho acreditando?
- Amor em dobro, como na música.
- Estou cansada de servir de tema pra suas metáforas inúteis, é um jogo sórdido, machucar em nome da arte.
- Não, não é um jogo, eu errei, foi só isso, todo mundo erra. Porra!!!! Eu sou humano.
- Tenho percebido. Só que eu não sou tão madura para compreender essa separação entre corpo e alma, afinal, será que realmente o coração é uma casa de putas com mil janelas como disse Gabriel Garcia Márquez?
- Só o tempo te mostrará que mudei.
- Tudo bem, eu aceito esperar... Tenho pouca coisa a perder...
- Eu te amo, eu vou te provar, você não vai se arrepender, eu serei o melhor homem, daqui a cinquenta anos, você se lembrará disso e pensará, enfim, valeu à pena acreditar.
- ...

Nossos homicídios premeditados não renderam grandes prisões. Como disse antes, o tempo é sarcástico, um verdadeiro gozador. Minhas traições ainda estão sendo tragadas, lentamente, feito um cigarro eterno de infelicidades. Enfisemas espalham-se por todo meu corpo. Um vagalume apagado perdido nas noites escuras. Lembro-me agora do verso de Lorca: “a morte botou ovos na ferida”. Espalho o amarelo sujo dos caracóis surgidos de gozos infecundos.
Não foi possível provar nada, não sei se mudei. Também não acredito que fantasmas presenciam nossas condutas. Há trinta anos questionaram-me o motivo de eu não jogar terra em você. E hoje eu sei responder. Afinal, como eu poderia jogar terra perante sua eternidade, se antes já roubara e regurgitara teus sonhos?

Acabo de lembrar o que procurava no bolso, era sua foto três por quatro, desenhei ano a ano as rugas que teria, assim sinto que envelheceu junto comigo.
A manhã parece fria. Volto para nossa casa, ela ainda tem a mesma cor, as nuances do sol do Mediterrâneo. Na minha boca, o gosto amargo dos cavalos mortos...


Conto publicado na Revista Caos e Letras

14 comentários:

Adriana Godoy disse...

Nossa, Márcia, que conto maravilhoso esse. Parece uma pintura de Van Gogh misturada à alma de Garcia Marquez. Cada linha é um jorro de imagens e emoções. Vc tem escrito pouco, mas, quando vem, arrebenta. Beijo.

ronaldobraga disse...

de uma forma crua marcia desfila de forma corajosa os suspensos sentimentos humanos, suas dificuldades e antes de tudo marcia permeia a realidade de possibilidades e acaba afirmando a pequenez dos grandes objetivos. é preciso pouco afirma o texto de marcia pra querer mais. talvez um retrato 3x4. por que afinal nem sempre procuramos o que procuramos.

Sueli Maia (Mai) disse...

Engoli a seco e a cru. Acho que tua escrita dispensa qualquer elogio, Márcia, mas este conto é víscera aberta. Não canso de admirar!

beijos

Rounds disse...

que bom ter você entre a gente de novo!

satisfação pura com seus escritos maravilhosos.

bj

Luciano disse...

Como é bom te ler. Estava com saudades dos teus escritos, Márcia. Muito mágico, mil imagens que se formam.
Thanks
Bj e arte.

Um paraíso para Eva disse...

Não te conheço, mas isso não me impede de dizr que seus contos são maravilhosos e esse me deixou embriagada de verdade.

Felipe Costa Marques disse...

o tempo é nada e
tudo são cavalos mortos

Lunna Guedes disse...

E as imagens vão se formando diante do meu olhar ou atrás dele, não sei direito. Enfim, está tudo lá, mas a inveja do peixe me escapou, embora tenha achado engraçado.
Bacio carissima

Luciano Fraga disse...

Márcia, difícil escolher no todo o que é mais poderoso, em cada frase e parágrafo um choque,escrita sempre cáustica, grande abraço.

Adriana Godoy disse...

Oi, bem que tentei de novo enviar o livro e deu errado. Vou anotar o CEP e envio na próxima semana, tá? Valeu pela dica. Acredita que me esqueci que vc era mulher do Daniel? KKKKKKKKKKKKKKK

Mas considere a dedicatória como sua também. Beijão.

lisa disse...

"A velhice exala o odor do estrume – fetos prematuros nascidos da imensidão dos dias. Não se iluda, o tempo não tem aliados, é um sádico nos arrancando, pacientemente, vértebra por vértebra, recordando a falência dos nossos instantes."

Não sei se já lhe disseram, mas você ainda vai ser muito falada, por conta da sua escrita. Isso me causa arrepios (no melhor sentido). Demais, carissima!

Anônimo disse...

o conto parece mesmo um quadro com algum recorte de folhetim colado entre as cores su(pra)reais. A imagem do cabeçalho do blog me fez lembrar que tenho um livro sobre ela para retomar.

Sueli Maia (Mai) disse...

"...a morte botou ovos na ferida." Garcia Lorca.
Mas também não importa quantas horas se passaram, que horam são, ou quantas ainda faltam...As larvas - aquelas - eclodirão fatalmente, e migrarão pelas vias.

Eu sempre volto p'ra te reler.

abraços de admiração

Diego Moraes disse...

beleza pura.