quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Anéis de Saturno

Mil lâminas cortavam minha face...

_ Você não presta! É uma puta dissimulada!
_ É mesmo?
_ Olha que eu te meto a mão na cara, sua vadia!
_ Verdade?
_ Não me olha assim, hein! Pára de fingir que está calma, porque esse seu olhar cínico lança um milhão de facas afiadas.
_ Eu quero mais é que você morra, você é um frouxo!
_ Quem aqui que é frou...............................................................................................................

Sai para procurar a constelação de Escorpião. Meu tio Bentinho disse que se a gente saísse à noite podia ver um escorpião andando no céu. Até o seu rabinho em forma de gancho podia se ver.

Era a coisa mais linda que eu já tinha visto. A lâmina alumiava tremelindando no peito farto da mulher gorda. O sangue vermelhinho, vermelhinho pelo chão. Os gritos estridentes vindos de todos os lados. Os faróis, as buzinas, as sirenes, os homens de branco... Mil mãos me apalpando, me fechando os olhos. A chuva veio devagarinho, devagarinho, clareando o sangue, escurecendo o asfalto. Meu corpo encharcado de água. Somente depois escapuliu difícil de meus olhos uma lágrima. Só então descobri, pela voz chorosa de minha tia, que o peito ensanguentado jogado no asfalto era o de minha mãe. As lágrimas ainda não amargas da infância se misturaram ao açúcar do pirulito ainda entre meus dentes. Eu não chorava porque minha mãe estava ali, estendida, vomitada no chão, mas porque a chuva, aos pouquinhos, ia desmanchando o desenho de sangue que se formava na calçada. Um desenho que eu nunca soube decifrar.

Um mês para o casamento e eu me sinto um esquizofrênico recém-saído do hospício, com as palavras girando desordenadas na cabeça. Olho para o meu rosto, minha barba negra e áspera desaparece. Vejo apenas uma criança assustada e infeliz observando o céu.
Alguns anos de convivência e todas as minhas imperfeições transfiguradas no rosto de um filho que me culpará eternamente. O rosto de um filho com as feições da minha mulher. Isso é nojento! A boca dele sugando seus seios.
Da minha janela eu vejo uma nuvem. Todos os dias a mesma nuvem, ela nasce para mim, se extinguirá com a minha morte. Eu me irrito com ela, tão infinita, tão irritantemente a mesma... Existiam nuvens na minha infância, mas elas se transformavam com uma facilidade impressionante, nessa fase eu nunca vi duas nuvens com a mesma forma, eram leões e pássaros disputando a mesma jaula.

MIL LÂMINAS cortando minha face e as agulhas arranham no vinil uma parte daquela música do Pink Floyd em que aparece um riso lunático. Olho para o espelho e minha barba continua por fazer. Ou, então, estou dentro de um ônibus lotado, os vidros todos embaçados, e numa letra de criança o meu nome escrito. Tento apagá-lo, ele não se move, como se fosse inscrito dentro do vidro. Quando faço menção de quebrá-lo, acordo, num total descontrole do destino de minhas mãos dentro de meus piores sonhos.

A agulha gira na última faixa do disco.

Não consigo caminhar até o altar. Existe nela o olhar vinho e provocador de minha mãe, em mim, a mão em punho e impulsiva de meu pai. A mesa está coberta de talheres, garfos, facas... são os presentes de casamento. MIL LÂMINAS ATORMENTAM MEU CÉREBRO. Na minha barriga a marca do meu último suicídio. Escorre uma lágrima, ela se perde nas linhas incongruentes de minha face. O copo de água com gelo transpira entre meus dedos, enquanto os cubos bóiam indiferentes no líquido translúcido. Lá fora, pela primeira vez, encontro a constelação de Escorpião, até sinto sua ferroada no meu calcanhar. O calcanhar de Aquiles, aquele do qual tio Bentinho tanto falava.
A noite está tão clara que posso até enxergar os Anéis de Saturno. Do meu pulso escorre um líquido escuro, viscoso e coagulante, do meu bolso furado caem delicadas flores de laranjeira, completando finalmente o vago desenho que nunca soubera formar através do pueril e trêmulo tracejado.

18 comentários:

Letícia disse...

Acho que serei a primeira a comentar seu texto. Eu vi tudo. Agonia, um filho com cara de homem tomando do corpo da mulher e presentes de casamento que atormentam. E sua marca registrada: Sangue. Me senti assistindo filme antigo. Você escreve bem demais, Marcia.

E passei também pra dizer que estou dando um tempo no Cosmic. Sabe aquela parada obrigatória? Preciso de novas palavras e me reciclar também. Acho melhor fechar a biblioteca a deixar os leitores lendo os mesmos livros.

Mas assim que voltar, que pode ser amanhã ou em meses, venho te dizer. Você sempre esteve lá e eu farei minha parte estando por aqui também. Passarei sempre pra ler seus textos.

Bjs...
Letícia

Blood Tears disse...

O sangue quente e viscoso, a marca não compreendida.... O casamento que representa as marcas indeléveis que a infância deixou.... Genial, adorei...

Blood Kisses

f@ disse...

..."a chuva, aos pouquinhos, ia desmanchando o desenho de sangue que se formava na calçada. Um desenho que eu nunca soube decifrar...."
Magnifico texto ... constelação de palavras... emoções...
Adoro vir aqui ler-te...
beijinhos das nuvens

Cristiana Fonseca disse...

Olá Marcia,
Teu texto é formidável, tua escrita é envolvente, é forte, maracante. Ler-te é como estar dentro de um filme, ou dentro de uma vida real.
Adorei teu texto e tua escrita.
Adorei a ilustração caiu como uma luva.
Beijos,
Cris

Cristiana Fonseca disse...

Olá Marcia,
Venho lhe agradecer a gentileza em teus comentários, teus e de teu marido.
São de palavras assim, que me fazem querer melhorar sempre e seguir em frente.
Obrigada.
Tb sou encantada com a escrita tua e de Daniel, são verdadeiros escritores.
E você esta muito bonita nestas fotos.
Beijos,
Cris

RENATA CORDEIRO disse...

Marcia:
Ki no Blog do João que vc não consegue pôr o selinho que dei a ele e ele repassou. Posso ensiná-la. Vc tem e-mail?
Vou dar uma verificada. Se não tiver, mande-me um recado que eu te explico de outra forma e te dou mais selinhos, tenho uns 30.
Bjs,
Rê (eu permito às pessoas de que gosto me chamarem de Rê)
wwwrenatacordeiro.blogspot.com

RENATA CORDEIRO disse...

Vc esteve no meu blog lendo a Princesa Prometida e não me deixou um recado? Isso é imperdoável! (risos)
Já vi que vc não tem e-mail exposto.
Pode mandar uma mensagem para:
renata99@ig.com.br
Bjs,

Marcia Barbieri disse...

Rê,

muito obrigada pela ajuda, eu só não coloco meu e-mail pq. o blog está com e-mail de outra pessoa,pq.qdo abri tive problemas técnicos,incompetência mesmo. Sempre passo noseu blog e leio,mas só comento depois de ler na íntegra e tou sem tempo esses dias. adoraria que me escrevesse.O e-mail é: marcia_barbieri@hotmail.com

Ana Beatriz Frusca disse...

De tirar o fôlego... fiel retrato do underground humano.

Beijos.

Anônimo disse...

excepcional! vou já lincar :-)

Luciano Fraga disse...

Márcia, texto com uma extrema profundidade e tristeza.Tocante, reflexivo. Lâminas cortando,marcas do último suicídio, escorpiões picando o calcanhar de Aquiles... Um ritmo alucinante, cheio de estilhaços, trágico, caótico, adoro sua escrita. Beijo.

Anônimo disse...

MARCIA TEM TEXTO SEU PUBLICADO EM
WWW.DIARIOSDOSONHO.BLOGSPOT.COM/

Jo disse...

Impressionante!

beijo*

Regular Joe disse...

Não gosto muito de ser repetitivo, mas às vezes é inevitável. Há textos seus que me fazem lembrar muito a candura e a força, ao final, dos de Lygia Fagundes Telles.
Os contrastes do puro e do demoníaco - uma espécie de maniqueísmo que, de certa forma, você contesta, com o enaltecer -, do bem que não se sabe se é bem e do mal que não se sabe se é mal, fazem dos seus escritos algo que me arrepia. Não são de ler uma vez, apenas, mas sim de releitura obrigatória (e para isto eu vou ser repetitivo, sim. Voltarei).
Adorei!
Beijos!

R. disse...

Puxa,de cortar a respiração!!!!!!

*

Ricardo Jung disse...

Cara que linguagem f... difícil, estilo Saramago. Exige inspiração pra ler... muita cor de caos e forma de sangue

Arrrrrt! Muita art é só o que vale

Toda maneira de fazer arte vale a pena

João Videira Santos disse...

Um texto onde o desenho das frases poéticas obrigam à reflexão...Gostei!

Germano Viana Xavier disse...

Relendo.

E quem terá sido que atirou a pedra na vidraça?

Eis um mistério!

Um carinho, Márcia.
Continuemos...