quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O Mágico


Por mais que eu carpisse, sempre estava empestado de amores-perfeitos em volta do poço. Nunca entendi. O solo era ruim e nunca chovia no meu quintal. Aliás, em toda minha vida devo ter presenciado umas duas tempestades, o resto eram chuviscos, serviam apenas para levantar o cheiro de terra.
Ao sair do quintal de casa gostava de olhar o tapete vermelho na soleira da porta, às vezes, ficava com as marcas do meu sapato.
- Sabe o que me deixa feliz meu pai?

- Não, mas deve ser alguma coisa que deixa alguém triste. Desde pequeno você era assim. Gostava de atirar pedras nas rolinhas, não pra matar, você não era capaz dessa bondade. Você gostava de vê-las agonizando, perdendo o fôlego aos poucos.
- Todo moleque atira pedras nos pássaros. O senhor nunca atirou, meu pai?
- Não, não atirei.

- É, acho que não mesmo. O senhor preferiu guardar desde a infância as pedras no bolso. E agora atira todas em cima de mim. Você esqueceu que sou seu filho?
- Como poderia? Você é tudo aquilo que sempre abominei em um homem. O destino é mesmo irônico!
- Eu não sou esse monstro que você diz.
- É, talvez não. Você é apenas um mágico. As coisas desaparecem depois que você as toca.
- Voltando ao o que eu dizia, sabe o que me deixa feliz? Saber que no final todos sempre acabam no fundo do poço.
- Isso te deixa feliz, não é? É a mesma alegria que você encontra quando mergulha seus olhos no fundo da cartola. Sinceramente, não sei da onde você saiu.

- Meu pai, quem saiu aos seus não degenera!
- Muitas vezes os provérbios afirmam grandes besteiras.
- Você lembra o que vovó dizia?

- Não.

- De boa árvore nunca sai mau fruto.
- Ela deve ter esquecido de dizer que, às vezes, o fruto apodrece ao se misturar com outros.
- Papai, papai! Não tire o corpo fora!

- Não se preocupe, eu não tiro não. Todos os dias peço desculpa a Deus. Espero que ele me perdoe.

- Eu também espero papai.

- O perdão não combina com você.

- Queria dizer meu pai que eu já perdoei o senhor.
- Pena que o seu perdão não vale uma cartola furada!

Ela nunca me olhava. Parecia sempre esperar alguém que nunca chegava. Ficava atento, mas jamais descobri pra quem ela entregava as flores. Era um pedido de perdão ou uma promessa de luto? Não sei. É tarde e todas as esquinas desapareceram com a escuridão e eu não tentarei tirá-las da cartola, embora eu acredite que elas podem ter se escondido por lá.
Afinal, pra que serve minha cartola? Ela só serve pra esconder as loucuras, os assassinados, as manias que rondam minha cabeça. Muitos mágicos fazem brotar coelhos de seus chapéus, do meu não surge nada, as coisas apenas desaparecem. Meu pai, minha mãe, meus irmãos, minha esposa, meu filho, todos se foram, como se houvesse um labirinto indecifrável no fundo da minha cartola. Já tentei fazê-los ressurgir, mas é impossível. As mágicas nunca funcionam comigo. Desde criança eu sabia que não seria um mágico de grandes espetáculos, apenas de pequenos truques.
Olho pro meu casaco de barata pendurado no biombo e sei que a qualquer momento eu posso ser esmagado por um pé distraído. Sempre tive muito mais vocação para palhaço, embora as pessoas digam que a maquiagem não poderia disfarçar minha cara de psicopata nem minhas olheiras de homem descrédulo.
Na esquina eu volto a ver a mulher negra com um maço de rosas vermelhas. As rosas estão envoltas num jornal velho, amarelado, com marcas de urina de gato.
Embora não pareça, eu adoro discutir com ela. Passam diante dos meus olhos cenas de jornais sensacionalistas. No quintal, o poço permanece em silêncio, as flores continuam a germinar em volta dele. Tiro a cartola da cabeça, ela está furada. “Você parece um poço sem fundo de tanta ambição!” Minha mãe dizia isso como se fosse um crime querer progredir na vida.
Agora todos os meus dias são uma segunda-feira (Por que será que há tantas segundas e tão poucos sábados na vida?). Mas isso não é uma sensação ruim, é uma sensação de alívio. Normalmente olhava pela fresta da porta e via apenas um pedaço do jornal amarelado que encobria as rosas e uma mão morena e encardida que se confundia com ele. Tinha uma vontade louca de esfregar aquelas mãos com uma escova de cerdas duras, entretanto, logo a vontade esvaecia, então, eu fechava a porta e ia até o quintal pegar água do poço, tomava um gole e sempre vinha um gosto enjoativo de ferrugem. Uma ânsia que se assemelhava a uma angústia. Engraçado, uma angústia própria dos homens bons e honestos. E eu não era bom, tão pouco honesto... Quantos homens eu furtei no fundo da minha cartola sem dar-lhes chance alguma! Meu pai riria se soubesse que uma lágrima escorreu do meu rosto. Diria com expressão impiedosa: “Lágrimas de crocodilo! Qual é o gosto da sua vítima dessa vez?”
Ele jamais acreditou que eu fosse capaz de sentimentos raros. E ele está certo. Não sou dado a sentimentalismos. A única coisa que me dói na vida é um molar. Desde o ano passado o dentista falou que precisava de canal. E daí? Talvez uma dor aguda me torne mais humano. Me torne finalmente o filho que a minha mãe sempre sonhou em ter: “Eu pedi tanto! Pedi tanto pra Santa Terezinha! Mas não adiantou, olha só! Que desgosto, meu Deus! Deve ter sido aquela promessa! Só pode ser! Eu prometi plantar umas rosas pra minha santinha e olha aí! O regaço dela seco, sem uma florzinha sequer!”
Ah, mamãe! Como você foi ingênua! Você acha mesmo que essa santa tem alguma coisa a ver com isso? Eu já nasci atravessado, com o cordão envolto no pescoço, foi meu primeiro suicídio. Sai de um poço pra vim parar em outro. Você vivia reclamando, de uns tempos pra cá, que se calou. Uma sonhadora! Eu sempre avisei: “A vida não é fácil, no final todos acabam no fundo do poço ou na beira dele!”. Seu otimismo me enojava. A senhora e o meu pai foram feitos um pro outro. Eu não entendo essa mania que pobre tem de achar que tudo esta sempre muito bom. A senhora agradecia por tudo e até mesmo o fato de eu ser um péssimo filho, era motivo pra agradecer, a senhora achava que era uma provação. Eu poderia dar voltas e voltas ao mundo se juntasse todos os seus terços e suas rezas. Quanta Ave Maria! Será que Deus a perdoará?
Queria voltar pro Circo, não posso, um cheiro estranho de fumaça e plástico me causa sonolência. Olho em direção ao poço, as flores insistem em nascer, por mais que as corte, arranque-as, elas voltam e elas florescem rapidamente. É um contraste irritante. O poço e as flores. Lembro da mão preta e das unhas encardidas da mulher da esquina. Olho por cima do muro, ela continua lá, estática e as rosas continuam frescas como se estivessem sido colhidas há pouco. Queria poder cortá-las uma a uma, como se fossem pragas. Não poço, não posso. Ranjo os dentes. Sinto eles trincarem como louça. As formigas andam ao redor do poço como num ritual, param, se cumprimentam e voltam a girar. Farejam feito cães sarnentos. Odeio os latidos dos cães, mas preciso suportá-los . Atrás desse muro há um cão enorme que ladra toda noite. Ele para apenas nas noites de chuva, no entanto nunca choveu no meu quintal. “Os cães ladram e a caravana passa”.
Tento dormir. Não consigo, o filho daquela demente não para de gritar. Eu já cansei de avisar, não adianta. Eles não acreditam, minhas palavras desaparecem como num passe de mágica: entram por um ouvido e saem por outro. Idiotas! Aquela louca não para de lavar pratos e panelas, eu não AGUENTO MAIS, a minha cabeça dói. Eles já não estão dentro de casa, e eu os escuto, só pode ser castigo! FILHOS DA PUTA! FILHOS DA PUTA! FILHOS DA PUTA!
Finalmente o sono vem. Olho para o tapete vermelho na soleira da porta. A lama negra dos meus pés estão ali, fétida e real. Eu sempre os alertei, a todos eles. Eles não acreditaram: “No final, todos acabam no fundo do poço”. Ainda hoje carpinei em volta dele e mesmo assim eu já posso sentir o cheiro de amores-perfeitos. Na esquina, a mulher negra com o maço sujo de rosas vermelhas continua a espera. Eu só não sei se é um pedido de perdão ou uma promessa de luto.

19 comentários:

Iara disse...

As imagens são belas, Márcia. Árido e denso, como têm que ser algumas escritas.

Um abraço de mim!

Blood Tears disse...

Um belo conto.... A realidade dança à nossa volta e os contos espelham-se nela...

Letícia disse...

Quando vi o título, pensei que fosse dar noutra coisa. Mas o texto seguiu outro caminho. Como sempre, é forte. Palavras fortes e dores e personagens que sempre me lembram alguém. Preciso ler de novo. Deixo apenas uma primeira impressão. Fim de poço e fundo da cartola. É tudo fim - tudo igual.
Bjs.



E tb falo pra dentro. Falo tanto que canso de mim mesma. :)

Iara disse...

Os textos meus que vc verá nos 3 distintos blogs, acabam tendo tb naturezas distintas. Vc verá histórias de escola, histórias de história e outras histórias. No www.mesadoeditor.com.br é que outros textos estão reunidos com cara, jeito e tipo de contos.
Sua visita é um privilégio, sempre. Visitar sua escrita, um prazer, sempre.
Vamos nos vendo assim!

Beijos pra vc!

Rounds disse...

márcia, bom seria se a gente enxergasse todas as pistas.
obrigado pelo carinho. vou linkar o seu blog no on the rocks.
bom fim de semana.
bj

RENATA CORDEIRO disse...

Amiga, já falei para o seu marido que só consegui postar a crítica de um filme infinitamente visto, mas que eu adoro, e poesias.
A culpa é a joça deste computador. Mal consigo ler o que você postou.
Um beijo,
Renata
wwwrenatacordeiro.blogspot.com

Ana Beatriz Frusca disse...

Fundo da Cartola, fundo do poço...
Genial esse conto!


Beijos.

f@ disse...

A realidade e a magia se confunde por vezes...
Texto bonito e carregado...
O poço e as flores pro funfo encanto como coelhinho branco em cartola... mesmo furada...
beijinhos das nuvens

rogério disse...

"- Meu pai, quem saiu aos seus não degenera!
- Muitas vezes os provérbios afirmam grandes besteiras."

hehe lollll lovely

J Araújo disse...

Menina, parabéns! Seu conto é lindo. Adorei!!

Continue...

Um excelente fnal de semana.
Bj

Vanda disse...

Marcia,


quantos haverão mais volteando poços, quantos haverão mais, qe no fim da vida, nada terão na cartola mas no coração sentrão o peso de uma vida sem ele...


Muito bem escrito, parabéns!


Beijo

Germano Viana Xavier disse...

verdade seja dita, parece que algo em nós sempre morre prematuramente. morre sem ser do nosso tempo o próprio esperar pelo susto. pode a figura do pai morrer assim como morre um passarinho qualquer espatifado no vidro de algum carro que passa. a magia da vida também está no defenestrar-se ou esvair-se por inteiro ou por partes.

Márcia, depois dá um relida e corrije algumas desatenções no texto.

Abraço, Márcia.

Ingrid Guerra disse...

Duro e impiedoso como a vida. Estou um tanto breviloqüente hoje, mas gostei dessa proposta de usar flores como pragas. Dá para filosofar um monte em cima disso. Queria ter talento para contos também. Super abraço.

JC disse...

Gostei do conto. Um texto forte, muito bem estruturado. Como sempre à imagem da Marcia.
A formacomo escrevemos, ou por vezes transcrevemos é sempre algo que se identifica connosco. Eu acho que a Marcia gosta deste tipo de textos e literatura.
Beijinhos

marcio mc disse...

A vida não vale um conto!Gostei do blog,sem falar no texto que está maravilhoso.É um conto extremamente reflexivo.


Te linkei no imagens...

Grande abraço.

Regular Joe disse...

Nossa! Terminei com um gosto de azinhavre na boca, e com uma sensação de nada, na cabeça, como terminei vários contos de Lygia Fagundes Telles, obras de Kafka, narrativas de Tolstoi... maravilhoso. Combinado, então, com a seqüência de fotos da direita - uma mulher linda e que escreve assim... ufffaa!
Tentador(a)!
Beijos carinhosos!

bsh disse...

Confeccionado com o coração.

http://desabafos-solitarios.blogspot.com/

RENATA CORDEIRO disse...

Querida:
Vc sabe que eu estava prestes a fechar o meu Blog, devido a línguas maledicentes, e só não o fiz porque recebi a solidariedade dos amigos, inclusive a sua. De quebra, fiz novo post, mais ousado. Apareça, querido, vc será muito benvindo.
wwwrenatacordeiro.blogspot.com/
Um beijo,
Renata
PS: Falo de um filme muito bom

Ricardo Jung disse...

Is hard to be an eagle

Mas é fácil e gostoso ser criança mesmo depois de adulto, o ruim, e isso é realmente péssimo, é quando a dose de otimismo é tão alta que beira a doçura diabética e a ingenuidade.. apodrece o corpo, e gangrena aos poucos nossa vida, é uma mania que eu também não entendo

Promessa de luto foi demais... tipo toque de gênio no quadro finalizado