sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Os quatro cavaleiros


157. Mal o dia amanhecera e eu enxerguei o primeiro cavaleiro. Primeiro me assustei os homens maus costumam se assustar por quase nada. Imaginei que fosse um daqueles delírios provocados pela raiva. Não, não era. Vinha vestido de branco, trazia um chapéu de feltro na cabeça e um 38 na cintura. Sua cara tinha a fúria dos assassinos que já sentaram a minha mesa, já compartilharam do meu ódio, já vomitaram do meu pão. A guerra começara.

Pôsteres de mulheres peladas se misturavam ao cheiro de mijo, café e carne crua. As paredes testemunhavam promessas de vingança. Camisetas e cuecas sujas esbarravam nos meus pensamentos: as grades, os cavalos, o tiro, a faca e o resto da merda toda que me colocou aqui. Poluem a minha mente meus inimigos de escola, os sempre foda, os sempre bons e eu sempre no fundo do poço remendando rancores velhos e recentes com linha imprestável. “Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo... E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil...”
O dia está claro, ofuscante e os ponteiros do relógio riem sarcásticos da minha cara de idiota. Embora aqui seja tudo tão imundo, eu sei que lá fora o sol queima o câncer de algum suicida. Os cavalos brancos me perseguem. Agora os parias brigam por restos, lá fora eu podia colher do pé frutas de mil reais, aqui eu espero a luta parar e recolho as migalhas. Não ligo pra eles, não os encaro, é arriscado demais. 157. Se não fossem os números já teria saído. O julgamento já teria acabado.

O sol se põe, adivinho pelo barulho dos ratos, eles preparam-se para sair das tocas. Esfreguei os olhos com os punhos fechados. Inútil, ele insistiu em aparecer, não pude fazer nada. Corpos suados e fedorentos aglomeravam-se ao meu redor. Era o segundo cavaleiro. Galopava coberto de sangue e vinha em minha direção. Trazia na mão esquerda um canivete. Alguns homens são fracos e corruptíveis. Meu corpo tremeu, não era medo do corte, era preguiça da luta, era nojo da lama do vale dos mortos.157. O inferno batia a minha porta. Cabala, mau presságio. É preciso saber ler os sinais. O rosto era anguloso, disforme. Tentei segurá-lo, abocanhei o seu braço musculoso, entretanto ele era forte demais. Cai, o canivete entrou entre minhas costelas, encostou-se a um dos meus rins. Apaguei.
A noite chegou, estava com a boca seca e amarga, era preciso beber, mastigar, rasgar um pedaço de uma coisa qualquer. Passavam um algodão molhado na minha boca. Queria socá-los, não podia, estava amarrado. Estava com fome e uma sonda enorme invadia meu corpo. Foi nessa hora, por volta das 11 horas da noite que eu avistei o terceiro cavaleiro. Ele vestia um terno negro e trazia dois soros, um em cada mão. Minha fome aumentava. Ele soltava gargalhadas. Ele parecia pesar meus pecados e contabilizá-los. 157. Esse é o número da minha desgraça.
A madrugada estava no fim e ainda não tinha dormido. Meu corpo queimava como brasa. Litros de suor e remorso atravessavam minha pele. O corte fedia, estava coberto de um líquido amarelo-esverdeado, uma espécie de decomposição precoce. Entrei em estado de delírio. Foi então que toquei meu dedo preso no quarto cavaleiro. Ele virou-se e pude ver seu rosto desfigurado. Era chegada a hora. 157. Essa foi a minha desgraça.

14 comentários:

Rounds disse...

olá,

ser mãe é um dom divino.
bom fim de semana.

bj

Luciano Fraga disse...

Tensão, suspense. Um delírio, a aproximação do apocalipse, uma maravilha seu texto, beijo.

f@ disse...

Brilho do pesadelo este texto envolvente...
o pesadelo acaba ao acordar com o galope do cavalo branco na praia deserta...
beijinhos das nuvens

Cristiana Fonseca disse...

Olá Marcia,
parabéns, ler-te é incrível, cada vez que aqui venho, admiro mais tua escrita.
Escreves com punho e alma.
Escrita forte, emocionante, sensível. Sublime.
Belo fim de semana.
Beijos,
Cris

Anônimo disse...

soa como um acerto de contas que perdeu o controle, um desejo de se autovomitar e para sempre ser esquecido por si mesmo.
maravilha de texto.

JC disse...

Txto envolvente,muito forte que nos relata factos da vida real e que nos deixa em suspense até ao seu final.
Beijos

RENATA CORDEIRO disse...

O seu texto me cativou dos pés à cabeça, ou seja, do princípio ao fim. Estou sem palavras. Emocionante.
A pedidos, e com saudades, acho que a semana que vem volto a fazer resenhas.
Beijos cheios de ternura,
Renata

Regular Joe disse...

Márcia... não sei se coincidência, devaneio meu, ou se adrede posto lá, o n. 157 é o artigo do Código Penal que tipifica o crime de roubo (sim, antes de me formar em Administração de Empresas cursei ciências jurídicas). Eu, a partir daí, senti-me numa cela. A descrição do ergástulo, o odor, parece-me havê-lo sentido. Depois, a confusão mental, as grades que nos tolhem a todos, o vôo de Ícaro que eu quis dar e não pude, porque meu superego-Dédalo me segurou, enfim... bálsamos variegados e bênçãos enodoadas encheram-me a alma, nesta sua crônica-de-vida deliciosa, à R. des Pigalles, algo a ser inscrito nos anais da literatura mundial.
Já amava, já a venerava, e doravante cultuo-a incondicionalmente.
Beijos carinhosos!

RENATA CORDEIRO disse...

Querida:
Eu falei que ia voltar a escrever sobre filmes, e o fiz. Estou feliz. não faço mais megaposts.
Um beijo,
Renata

Heitor Cardoso disse...

me arrepiei. Brrr.

157.


Ja nao tenho palavras pra descrever tua grandiosidade.
Isso me deprime.
Beijos ternos.

guru martins disse...

...noossaaa!!!

bj

RENATA CORDEIRO disse...

Amiga:
Preciso que você vá com urgência ao meu Blog e ponha um comentário no meu novo post.
Renata
Se não fosse urgente, eu não chamaria

Blood Tears disse...

Os quatro cavaleiros do Apocalipse e o Juízo final...... O algodão molhado, e o Cristo a quem dão vinagre a beber no Gólgota...

Tá genial este conto...

Blood Kisses

Ricardo Jung disse...

Q merda de revólver, não cumpre nem o seu medíocre papel de estender a sua mão, de nos a dar a sua função, a sua bala, mesmo que doa

Mas é assim... um dia a casa cai... o que a gente mais odeia nos outros desponta horrendo e imponente em nós mesmos

É cruel...