quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 15

Quando caminho sob esse sol que explode impiedoso na minha cabeça, sinto ódio de Lúcio, sinto raiva dos meus pés desobedientes e descalços, o asfalto queima minha alma. Procuro um bar, um café, um boteco, qualquer coisa que me tire do meio de todo esse lixo. Trilhos e galopes perpassam meu corpo. Cães mortos e fétidos fecham a avenida. Judas não se enforcaria em troca de míseras moedas. Traidores se escondem nos meus bolsos sujos. Os homens já não disfarçam seus pensamentos nos chapéus. Tanto sofrimento, tanta procura para acabar jogada na vala comum, onde não germinam flores nem palavras. Não consigo esquecer o cheiro forte de nicotina escorrendo fria dos seus dedos. As unhas duras e supostamente amarelas. A barba crescida lembra um comunista que não reparte nem o amargo do próprio cuspe. Não gosto de imaginar aquelas putas roçando o seu rosto sujo. Meu sangue ferve só de supor: “Você enxerga demais, mesmo sem ver nada!”. Imbecil, cretino! Como posso querer vê-lo com outras? Não sou masoquista, no entanto, as imagens me perseguem. Nosso amor sobrevive na carnificina da guerra, em meio a tiros e amputações.
- Me dá um café.
- Com açúcar ou adoçante?
- Não importa. Me traz a droga do café!
- Puro ou com creme? Prefere copo de viagem?
- Você é imbecil ou o quê? Se eu pedi um café é porque quero um café e só.
- Perdão, não quis incomodá-la.
- Vocês são todas iguais, a gente tira o pingo e não são capazes de reconhecer o i.
- Mais alguma coisa?
- Não.
- Pronto, o seu café puro.
- Obrigada.
Rugas envelhecem o asfalto. Eu poderia reclamar por mais alguns minutos, dizer que o café tá frio ou fraco. Cansei, xingá-la não me satisfaz. Nada poderá feri-la. Ela fala baixo e calmo, como as pessoas felizes ou conformadas. Ela é segura, não treme, caso contrário, eu escutaria o barulho da colher na bandeja.
O café ainda está quente. Pequenos vulcões irrompem dentro da xícara, a lava escorre negra e tímida. Poderia sorvê-la, mas eu não gosto de café. Tiros abrem fendas em minhas mãos. A moça do café passa por mim, poderia lhe dar uma rasteira e fazê-la esborrachar no chão, como tantas vezes tenho esborrachado, mesmo na simples descida do meio-fio.
Metade do café fica na xícara. Meu único prazer foi insultar a balconista. No final da tarde, ela nem recordará. Haverá outros clientes, outros xingos. Sentarão nas mesas outros infelizes. Um rio brota incoerente nas veias de um cardíaco.

19 comentários:

RENATA CORDEIRO disse...

Marcia:
A sua escrita é muito boa, forte, às vezes, crua. Gosto muito disso.
Fiz nova postagem sobre um filme policial, há poemas meus, outro traduzido, imagens novas e outras do post antecessor, flores, etc.
Estou à sua espera.
Um abraço,
Renata

Regular Joe disse...

Este "Mosaico de Rancores" está maravilhoso, eis que o venho acompanhando a bom tempo, prelibando, a cada um, os prazeres do próximo.
Divido meu comentário em duas partes. A primeira, porque você haja mencionado, lá no As Rosas, Baudolino, este, segundo um recente crítico, é um quase-mentecapto, romântico e
puro, cujas aventuras e batalhas burlescas no séc. XII por mares e terras inexploradas, cruzadas santas, heresias novas, apostasias velhas e diaconatos licenciosos, o fazem amigo do Imperador Frederico I, o Barba Ruiva, e íntimo da imperatriz Beatriz, cujos lábios com seus próprios beijou em
fulminante eternidade, com não menor reverente unção que respeitosa paixão,
no mais deleitando-se com os fascínios da ausência de seu amor imperial,
para depois encontrar o amor-de-fornicação da doce e desajeitada jovem madona Colandrina que também sonhava com o Santo Graal, que Baudolino encontra!, mas somente em uma ipásia, por nome Ipásia, bela e socrática ninfa trazida por unicórnio helenófono, descobrindo mais tarde o verdadeiro amor, o amor que não dá espaço ao ciúme, o amor de que João evangelista
dissera expulsar todo o temor, o amor que habita o triclínio do coração e ali encontra quietude. À pergunta de Ipásia, “És jovem?”, Baudolino responde “Sou jovem, meu amor, começo a nascer agora.” E na intimidade de amantes em himeneu,
ela sussurrando o chama “meu Éon, meu Tirano, meu Abismo, minha Ogdoade, meu Pleroma...”. Mas então Ipásia revela-se filha de sátiro e, de formosura egípcia
que fosse, para eles não houve amanhã. A lição final dá-nos Baudolino em sua resposta à pergunta “mas quem te disse que viverás até o fim da viagem?”: “Viajar
rejuvenesce!” Eco me tocou de tal maneira com seu livro, e tanto, que às vezes eu me sinto o próprio Baudolino, à busca de mim mesmo.
A segunda: aqui muito se viaja. Muito se aprende. Suas introspecções nos conduzem, seus raciocínios nos levam a ver as cenas. Senti o cheiro do cigarro. Vi a unha amarelecida. Senti asco e revolta, ódio e ciúme... senti. Você nos faz sentir. Sua escrita é viva e nos dá vida, mesmo quando fala em (ou sugere) assassínio e morte.
Isto é dom. E você o tem.
Beijos, linda, muitos, todos carinhosos, do João

f@ disse...

Mais uma vez um texto sublime… para reler sempre…
"...sujos. Os homens já não disfarçam seus pensamentos nos chapéus. Tanto..." que não existiria chapéu do tamanho necessário... ou o chapéu teria de ser elástico o suficiente para não sair como bomba e explodir faíscas ou estranhos corpos de um dejecto qualquer…

E nos cabelos ou na sua ausência deve encontrar-se decerto algo que mto sabe do cérebro e do coração… se é que ainda há equilíbrio entre os dois…

Beijinhos das nuvens

Rounds disse...

muito bom.
considero você, mônica montone, gabriele fidalgo e samantha abreu, as melhores escritoras do momento.
é sempre prazeroso passar por aqui.

bj

Germano Viana Xavier disse...

Fez jus ao título, Márcia.
Simplesmente um Mosaico de Rancores.

Um carinho.
Continuemos...

Luciano Fraga disse...

Márcia, como diz a lenda: "o lobo arrasta o cordeiro, depois o devora sem se importar com os argumentos de defesa". Muitas vezes somos arrebatados por sentimentos de insatisfação inexplicaveis,ódio/amor/rancores.Sua escrita é especial,beijo.

Regular Joe disse...

Nossa, vim reler este texto maravilhoso e me senti um vernaculicida! Transformei o verbo haver numa reles preposição, ou num artigo. Assim, lá onde escrevi, desavisadamente, "a bom tempo", por favor, leia-se "há bom tempo"! Ai, Jesus! De qualquer forma, eis aí o efeito desconcertante dos escritos que nos inebriam, sobre o volante das palavras. Lei seca no João, que adora seus textos e se embriaga com suas idéias.
Beijos carinhosos

JC disse...

A dorga é um dos piores males da sociedade em que vivemos. É uma prga que acho que nunca terá fim. Há muita gente poderosa que vive à custa das pessoas que a consomem. Ficam felizes porque ganham muito dinheiro, mas fazem muito mais pessoas e famílias infelizes com este flagelo. O que fazem os governos para contrariar tudo isto? Aguns muito pouco, outros atrvo-me mesmo a dizer nada. E porquê? Será que eles tamb+em não terão interesses na comercialização com as receitas das vendas.
Haja alguém. Alguma instituição que ponha cobro a toda esta situação.
Que o mundo se una e faça algo para quem consome cada vez diminua mais e não aumente.
Não sei se alguma vez se irá conseguir. Mas tenho esperança, pelo menos na melhoria e que a propria sociedade se una em voluntariado para ajudar todas estas pessoas.
Beijinho

Cristiana Fonseca disse...

Olá Marcia,
Belo texto, belos mosaicos. Sublime
Tens uma escrita forte e rica.
Deixo minhas desculpas pela ausência
Tenho estado envolvida com alguns projetos , que me tomaram o tempo
Voltarei, para ler-te.
Obrigada pela doce visita
Beijos,
Cris

Braga e Poesia disse...

maravilha de texto.
e vc disse certo sobre comunista, eles adoram dividir o que é de outros. mas quando é pra eles a conta é somar ou multiplicar e ainda adicionar.
e o texto revela uma pessoa que perdeu aquele estado onde a mentira ainda é viavel e vive em um momento que as coisas são o que são sem a mascara do social.
mosaico de rancores: textos ricos e importantes.

Germano Viana Xavier disse...

E você está se especializando na construção de frases impactantes, Márcia.

Outro carinho.
Continuemos...

Unknown disse...

Olá Marciazinha

Menina: não sei como fazes para continuares e continuares e continuares e continuares tão bonita! As pilhas Duracell, ao pé de ti, não têm nenhuma hipótese...


Depois das mini-férias (que foram excelentes) e com as baterias recarregadas, estou de regresso. E, de novo, visito o teu blogue, que continua em grande forma. Uma vez mais, muitos parabéns! Espero que também voltes ao www.aminhatravessadoferreira.blogspot.com, que, como sabes, é o meu novo. Já tenho saudades de ti e das tuas visitas. Obrigado.

Qjs

Marisa Prado Lopes disse...

Ola' Marcia,
That's me: Marisa :)
Parabens pelo blog!!

Mouseîn (mosaico), palavra grega que deu origem a palavra mu'sica (proprio das musas).
Mosaico, utilizado nos estudos matematicos do preenchimento de um plano com figuras geométricas, como numa malha de triângulos, quadriláteros ou hexágonos.
Mosaico de Rancores: trabalho digna de Musas, de rara beleza, de pedacinhos crus em diversas sentencas, uma arte musiva feita com palavras para durar seculos!

Bjao
Ma'

Ynot Nosirrah disse...

Olá, gostei de seu blog. Gostaria que também conhecesse o meu. Será bem-vinda.

http://conscienciaacademica.blogspot.com/

Blood Tears disse...

Um café puro, e as dificuldades em que nos dêem algo puro, sem pormenores supérfluos, sem oscilações...... Adorei a continuação e aguardo por mais... :)

Blood Kisses

Heduardo Kiesse disse...

tenho mesmo que me pôr em linah de escuta para prosseguir o conto e seguir o que contas querida amiga!

aqui ha estrela!!





beijo

edu

Anônimo disse...

os cardiacos sofrem ..demais.....abraço

Germano Viana Xavier disse...

Enquanto não vem texto novo, deixo um carinho de domingo.

Continuemos, Márcia...

Unknown disse...

CONCURSO

Há um novo concurso no meu www.aminhatravessadoferreira.blogspot.com.
Comparece e concorre. Muito obrigado