sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Conto: Alvo



A
L . V
O

Observava sua boca fina e estéril. Quem a olhava jamais poderia imaginar quantas palvras formigavam ali. Batom e biles se misturavam num gosto amargo e solitário. Sua boca sugando o cigarro, ou seria o cigarro sugando sua boca? Descia a escada helicoidal mexendo duramente o quadril magro.

Se não fosse tão bonita seria insuportável! Gritava feito uma louca: "Você é surdo, mas que droga!". Nessas ocasiões eu via a úvula da minha mãe balançar, uma gelatina indigesta. Essa é a imagem que me prende a ela: uma histérica de coque na cabeça, no lugar da face um enorme rasgo amarelo de nicotina e dentes negros de infelicidade. Fui parido um pouco por essa cor abismal.

O saxofone pendurado na parede. Conchas do mar na escrivaninha. Ela adorava escutar conchas do mar. Eu adorava ver meu saxofone ali; onipotente, expressivo, intimidador. Nunca aprendia a tocar. Mas ele, ali, pendurado, me fazia forte. Eustáquio. Odeio esse nome. Por que não me chamo Rodrigo Paulo Marcio João José????????? Marcela eu gosto, se ela fosse mais doce....

Esse vizinho imbecil martelando, martelando, martelando... toda hora, todo dia, me lembram as infernais badaladas do relógio da casa velha da minha vó.
Quando estou fodido e triste, gosto de sentir sob meus dedos as reentrâncias do vinil, as agulhas arranhando a roda negra: "Folha Morta" de Ary Barroso.

Ela me odeia, ela repugna meus olhos burros de incompreensão. Uma espécie de punição, autoflagelo. Ela é minha pérfida Ariadne, ela me dá o novelo para atravessar o labirinto e quando estou perto da saída, ela o puxa, pelo simples prazer de me ver perdido entre centenas de maçanetas e nenhuma mão. Milhões de vozes mudas ecoam nos meus ouvidos. PAVilhões cheios de gente... Marcela rindo da minha desgraça. A boca amarela-preta da minha mãe...

Poderia dar um tiro em meu ouvido, mas nasci surdo e me recuso a não escutar o estrondo da minha morte. No vinil gira um réquiem do Debussy. O sax toma toda a dimensão da sala.
Do labirinto

escorrem

metros

e

metros

de um novelo

macio e vermelho.

18 comentários:

pianistaboxeador21 disse...

Como você mesma disse outro dia... acho que já vi este texto em algum lugar!
Beijocas,
Dan

Anônimo disse...

Adorei o seu conto Marcia! Parabéns.
Como chegou à minha foto? Vc.tem algo a ver com o Barbiéri (artista gráfico) que faz alguns trabalhos para o Banco BESA de Angola?
Pode ser...
Talvez ainda use o seu lindo conto para "acompanhar" essa foto na minha galeria de fotografia no site "Olhares. com" ehehehe! Beijo.

nd disse...

Um conto interessante.
Bjs

Cadinho RoCo disse...

Quando o novelo parece perdido eis que ele surge ve4rmelho enigmático e aos gritos de quem não ouve e nem toca saxofone.
CADINHO rOcO

Fernando Miranda disse...

Ah sim, eletrônica a beça! Um prato cheio pra galera que curte um som 'indie'. Mas, concordo contigo, a banda é boa, mas é preciso mesclar um pouco mais as influências. Torço por eles! Recomendo que você ouça a banda Paatos, há uma postagem sobre a banda no blog, é sueca, e divina!!

Abraço!
Brazylianskies

Ana Beatriz Frusca disse...

Escreves muitíssimo bem!
Cadê o a de...quantas palvras...o gato comeu?(logo no pimeiro parágrafo). rs.
Poem ir ao meu espaço à vontade...sintam-se em casa.

Bom fim-de-semana!

Beijinho.

Impasse Livre disse...

GOSTEI DO QUE ESCREVESTES EM SEU PERFIL A GENTE É O QUE ESCREVE, ENTÃO PODEMOS PENSAR NUM MUNDO MAIS PERFEITO TB, SEUS TRAÇOS ENQUANTO ESCRITORA SÃO DE ALIAR FINEZA E SIMPLICIDA A RUDEZA DA VIDA. sEMÂNTICAMENTE TRABALHA BEM SUAS FRASES E USA O SENTIDO DENOTATIVO ESXPRESSANDO SUAS IDEIAS EM TEXTOS COERENTES E COESOS, BEM LEGAL, TANTO QUE QUERO VOLTAR OUTRAS VEZES POR AQUI...

Letícia disse...

Adoro criar personagens masculinos. Percebo que você também tem essa tendência. O bom é fazer isso e sair de nosso conhecido universo feminino e entrar em outras atmosferas. E a gente gosta de ser Ariadne às vezes.

Vi que esteve no blog do Germano. Todo mundo anda preocupado, mas ele está bem. É só a bagunça de mudar de casa e ainda ter que organizar um monte de coisas. Ele ainda não instalou a internet, mas continua escrevendo. Aliás, o Germano já tem material pra vida toda. Ele escreve até dormindo. :)

Bjs...

Letícia

f@ disse...

Labirinto de palavras que se enovelaram melodiosa mente ao som "on / off" de saxofone... gostei mto
beijinhos das nuvens

Srta Laís disse...

"Batom e biles se misturavam num gosto amargo e solitário. Sua boca sugando o cigarro, ou seria o cigarro sugando sua boca? Descia a escada helicoidal mexendo duramente o quadril magro."

Amoo a sua forma de escrever... o jeito que você descreve me faz visualizar todo um cenário, ahuahauahaua

beijos

Impasse Livre disse...

E quem abe, se a vida não vale um conto? No Nordeste por um conto nego rifa um...rs...Mas, como o seu conto, não se conta em cédulas talvez a vida valha mais do que um conto, porque a gente lê um conto seu e quer ler outro e outro e aí já viu a vida vai valer milhares de contos!

JC disse...

Escreve muito bem. Gostei muito dos seu conto. Fico á espera do próximo, de certeza com a mesma qualidade deste.
Beijinhos

O empírico disse...

Lindo e decadente...

Gostei,
muito.

Heitor Cardoso disse...

Essa mistura entre paixao e descaso em relaçao a vida me fazem verdadeiramente teu fã.

Desculpe nao ter respondido antes os comentarios, ando sem espaço até pra escrever. ando meio sem tempo, mas aposto que o tempo ainda me tem.

enfim, continue o belissimo trabalho :) Beijao :*

Ricardo Jung disse...

Macio e vermelho, da cor da maldição desgraça e inferno sangrento

Da cor que ficou a face da minha mãezinha horas antes de morrer

Sabe, o revólver se tornou menos atraente pra mim... não gosto de seu estilo escandaloso de ajudar. Quero álcool e ansiolíticos, parece muito mais cool e nem bagunça a casa

Marcia Barbieri disse...

Ricardo,
eu gosto é do barulho,do estardalhaço,comprimidos não deixam vestígios.
Beijos
MArcia

Regular Joe disse...

Quanta intensidade! Quanta poesia na prosa, quanta vida nas letras, quanta concretude na abstração, quanta... coisa bonita ao mesmo tempo! Força e sutileza, feminilidade e firmeza, enfim, um misto de antípodas que se complementam lindamente.
Beijos carinhosos!

Saxofonando Quarteto disse...

Marcia foi uma das coisas mais lindas que já li! A arte é isso mesmo tem o poder de tocar as pessoas, só a arte transforma, só a arte possibilida a conversa com o divíno!

Parabéns!