quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 7

A minha irmã era o único ser do mundo que me entendia, não que ela soubesse desse fato. Aliás, ela ainda não sabia de nada quando aquela bala atravessou sua cabeça e lhe deu uma grande rasteira. Não sei se algum dia acharei isso ruim. Não acredito que a vida tivesse sido muito gentil com ela. A morte é mais excitante, são cavalos vermelhos e selvagens. Se pudesse escolher, eu escolheria a morte, para poupar a pobre da Belinha. Meu pai cuspia pelas frestas feias dos seus dentes: "O ciúmes é faca de corte lento, primeiro estraçalha a carne, depois vomita o sangue."

Belinha tinha o sangue fraco, não pude olhar, mas desconfio não ter escorrido nenhum líquido de sua cabeça. E de pensar que seus olhos eram tão azuis! Só me recordo que eles começaram se tornar tão cinza quanto o chumbo que, por engano de Deus ou do Diabo, se alojou feito pensamento em seu cérebro. Imagino quantos gritos foram estrangulados naquele instante. A fumaça preta do café se misturava ao cheiro amargo da pólvora. As lágrimas não se formaram nos meus olhos. "O ciúmes mata feito trem descarrilhado!". Eu não compreendia aquelas palavras, nem me importava com elas, não compreendia o enxofre misturado com toda aquela poeira. Talvez tenha sido a primeira vez que ouvi o zunido das primeiras moscas azuis.

Escuto ao longe o barulho do rio verde e calmo ou talvez, seja apenas o líquido da sua cabeça, que depois de anos resolvera jorrar.

8 comentários:

Letícia disse...

Tenho acompanhado esse seu Mosaico e vou ser sincera. Tem palavra aí que não sei usar. Porque palavra é forte e sou fraca. Isso me fez lembrar coisa que sempre leio pra me sentir mais forte.

"Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco."

(Drummond)

Seu texto é brutal, Marcia. Machuca. E eu continuo lendo. Acho que lemos mesmo pra nos encontrarmos. É o que penso.

"A morte é mais excitante, são cavalos vermelhos e selvagens."

(Marcia Barbieri)

Alexandre Bonafim disse...

Obrigado pela visita. Abração.

Anônimo disse...

Seu "Mosaico" segue assentando leitores num rejunte de dura delicadeza. Palavras maciças, Márcia. Escorrem com peso e venho apanhá-las, todos os dias...

Ricardo Jung disse...

eu juro, eu estou arrepiado

que estilo nobre-pessimista de escrever

seu caos pisciano exala veneno, que você bebe cospe e mija, digo, faz xixi(você é mulher)...

não é graça, é dor verde, da cor do seu tempero que tanto me educa e tanto machuca... e pra você não, parece estar já resistente, ou imune

belo retorno de Saturno... bagunçando o já bagunçado

pianistaboxeador21 disse...

A Márcia não é chegada a Black Sabbath, mas suas palavras Têm o peso da guitarra do Toni Iomi.
Te quero,
Dan.

Germano Viana Xavier disse...

pólvora pulverizada
anódina pólvora
paiol cantil
o humano em revolta
revoltoso
explodindo...

texto-bomba-tiro
quem fica?

Heitor Cardoso disse...

Bem, isso me lembrou uma frase que vi num livro de Julio Cortazar
'a vida nao vale nada, mas nada vale uma vida.'

Muito bom, penso que terei que passar por aqui mais vezes :) e já está adicionado aos favoritos. Grande abraço, e parabens.

Heitor Cardoso disse...

Nem sabia que o que eu fazia era prosa poetica :] Pois é, hoje em dia é bem dificil achar pessoas que se interessem pelo nosso 'trabalho', mas o que mais me revolta, é que ninguem dá o valor devido a algo tao importante quanto é a literatura, especialmente a nossa, que é uma expressao da juventude de hoje, uma prova de que somos bem mais do que simples alienados e passivos de ideias e pensamentos.
Mas de qualquer forma, é sempre um prazer compartilhar ideias com pessoas como voce, minha cara :)
Volte sempre, beijos.
E fique a vontade para dar sugestoes!