domingo, 30 de novembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 20

Cupins infestam a cômoda da memória. Por vezes disfarçados no magnésio de tuas fotografias, que já não posso ver. Por vezes transmutados em canções antigas, de amor é preciso dizer. Por vezes escondidos nos buracos do queijo, ou no gosto de madeleines, pra quem gosta de madeleines. O rádio continua tocando estas canções absurdas e eu caminho pela casa esbarrando nos teus braços, nos teus sorrisos, nesse teu olhar impossível.Tira Lúcio... tira esse teu sorriso do meu caminho que eu quero passar com a minha dor. Não é ódio querido, como você disse, é só essa dor absurda. A tua felicidade sem mim que me dói como um filho arrancado das entranhas. Facas afiadas doeriam menos que tuas gargalhadas com os amigos e amigas na sala. Vem ficar com a gente! Você me diz. Nem pedras, nem carvalhos, nem submarinos de Julio Verne. Só eu pedindo por Edith Piaf até o fim.Só eu pedindo por Frida Kahlo até o fim.Uma mártir-mulher cravejada de pregos que chorou ouvindo Jonhy Cash, só porque ele não tinha piedade. Meus olhos são girassóis de sangue. Meu sexo é girassol de sangue. Tudo o que em mim sente é uma flor vermelha escorrendo pela alma. Se é que eu tenho isso. E, se tenho, ela fede a pólvora e enxofre, como a alma podre de Lúcifer, Lúcio. Eu te sou e tu me és. Como a tua rubrica dentro da minha rubrica. Como o teu nome dentro do meu nome. Como o gato preto que se esconde atrás da pele do gato branco. Tanto se me dão as cores... tanto se me dão as peles dos gatos, pois são os ratos que invadem o quarto em meio ao rio verde, que também pode ser vermelho, ou roxo, enquanto você continua a rir na sala e do canto dos teus lábios escorre um mel viscoso. Eu te quero bem desde antes do big bang e até o final dos planetas. Cristo é testemunha. O canto dos bem-te-vis tentam me convencer de que ainda há esperança, mas os meus sentimentos são o cadáver de um cão, ou a caveira de um animal qualquer brilhando ao pôr-do-sol de um dia de setembro. Volte pra lá, amor. Todos eles, todas elas, te esperam, porque você desenha sorrisos no rosto das pessoas.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 19

Nem pedras, nem carvalhos, nem submarinos de Júlio Verne. Apenas uma dor que beirava o absurdo. Trens descarrilhados nas minhas vértebras. Canções de agosto. O tempo passa em sentido anti-horário. Caminho em círculos. Espero ansiosa sua chegada. O medo é uma lesma vagando sobre azulejos. Penso nas lentes da sua máquina. Imagino posses. "Les Demoisseles D’Avignon". Agora as mulheres devem estar se oferecendo em taças de champagne, fingindo falsos interesses, grandes filosofias, que sempre se perdem na cama. Pérolas devorando ostras. Preciso dos seus olhos ou me perco nas reentrâncias dos meus abismos. “Voyage autor de ma chambre”. E você conhecendo mundos, se perdendo em Evas e verbos, acariciando outros sexos, vertendo verdades de outras entranhas. Côncavo e convexo. Nunca conheci o Paraíso. Maçãs e serpentes descansam nos retalhos. Não conheço a paz dos mortos. “O ciúme é uma faca cravejada de diamantes.” Talvez você não volte, há vários labirintos entre o Gênesis e o Apocalipse. O seu gosto ainda atormenta minha língua. Posso povoar mundos apenas das sobras de suas lembranças. Um rio verde e leitoso escorre entre minhas pernas. Olhos de peixe sempre acessos, minha eterna vigília.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 18

Barcos que não levam a lugar algum. Eu viajo amanhã. Ele me faz esboçar um pequeno sorriso. Dentes ruminando rancores. Falso. Pouco importa, ele não pretende comprar a briga. Leões continuam devorando suas presas entre os lençóis. Algemas... E eu aqui, sem chicote e sem mãos e com os olhos vendados. Abaixo a cabeça, sei que é inútil enfrentá-lo, seus flashs me cegariam. Sento no sofá e escolho ao acaso os retalhos, texturas e cores se perdem num poço fundo. Escuro. Não há cordas, nem mortos nem feridos. Agulhas atravessam o tecido e ele permanece no seu silêncio de domingo. Qualquer passo errado e ele despencará de um prédio de 10 andares. Engulo minha saliva e milhares de garras arranham minha garganta. Não dessa vez. Me calo. Formigas correm pelo meu corpo. Cobras saltam das minhas entranhas. E eu continuo sentada escolhendo a combinação perfeita. Aulas de yoga. “O ciúme é uma viagem sem ponto de parada.” Poderia impedi-lo de sair, trancar a porta, engolir a chave como aspirina. Ele beija meu rosto. Imagino outros beijos, imagino sua boca furtando outras bocas, invadindo outras coxas. Sinto Guernica dentro de mim. Poderia mergulhar até o fundo do poço e achar pedras verdes e preciosas, porém meus pés estão cansados de calcar o carvalho.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 17

Nossos corpos sob o sol do meio-dia. Vejo Frida Kahlo duplicada, comendo a si mesma. Observo nosso sexo.Colunas Partidas. Ferros atravessando minha vida, traves fechando meus olhos. Mãos cobrindo minha falta de pudor. Cavalgo sobre seu dorso. É frustrante devorar a incerteza de um desconhecido. Não vejo teu rosto. Luzes apagadas, frestas fechadas,vidros foscos. Cavalgo e imagino outra estrada, outras paisagens, janelas e olhares que jamais se abrirão. Um voyeur cego. Trilhos e ampulhetas dividem meus pensamentos. Sonho encontrar um caminho onde os lírios não conheçam o desespero das águas, nem desejem se misturar ao lodo. Flores de lótus não são plantadas em vasos. Ainda com as rédeas, percorro um campo de papoulas (a beleza é traiçoeira) e deparo-me com os mortos de heroína. Pico na veia. Passagem de ida ao Inferno. Filhos degenerados de Dante.
Despertam dores. No dia seguinte a paixão é lua minguante. Gozo nos lençóis. O amor é assim, arrumação de camas, ruas sem saídas, novelos de uma Ariadne perdida no labirinto. Há barcas para atravessar o rio verde que invade meu quarto.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 16

Lá fora o sol secava as poças da última chuva. As tempestades passam, a calmaria chega, tarde, mas chega, no entanto, não são capazes de apagar os buracos deixados no asfalto. Um piche negro esconde meus olhos. Desviemos. Eu sorrio ainda, naquela foto de anos atrás, ao redor dos olhos, as rugas miravam minha tristeza. Olhos parados, sem expressão, olhos de pouco ver. Eles flertavam com a morte. Ela chega devagar, furtando um dia de cada vez, como esses amores brutais de subúrbio, os quais terminam manchando o chão e as páginas dos jornais. Aos domingos ela parece chegar manca, tenho a vaga impressão que não há mortos nem ternos de domingo. Filmes mudos atravessam minha retina. Ele me fita nesses instantes, nesses segundos singulares nos quais a vida se liquifaz entre nossos dedos. Negativos suspensos por toda a casa. A morte descansando sob nossos varais. Roupas sujas. Há sempre meias sujas escondidas no fundo de algum armário, no abismo covarde de algum baú. Os carros passam e a fumaça fica. Minhas narinas estão atravancadas. Não sei se é alergia ou desespero. Ou medo de inspirar todo o lodaçal que atravessa minha rua. Formas geométricas se avolumam na minha cabeça. A menor distância entre dois pontos é a reta. Rios verdes correm avessos a minha vontade. Queria que os ratos e as flores jamais se encontrassem.