sábado, 27 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 26

Nossos corpos disputam espaço com os lençóis. É bom sentir o cheiro, o corpo e o gosto de outro homem. Não pergunto seu nome, ele tampouco, nomes não revelam ninguém, ocultam. Ele prende meus pulsos com uma das mãos e percorre a língua por cada centímetro doloroso e imperfeito do meu corpo. Arrepios e gemidos. Meninos quebrando vidraças. É assim que me vejo. Esqueço as cegueiras e as cataratas do meu mundo. Na escuridão os olhos não são bons companheiros e o caçador precisa apenas de bom faro. Ele solta meus pulsos e aperta com força meus quadris, enquanto sua cabeça e sua boca parecem desejar penetrar no meu íntimo. Um nascimento às avessas. Recôncavos e reentrâncias. Salto por cima do seu corpo. Seu rosto desconhecido me atrai. Ele tem ombros largos. Talvez possa segurar o mundo nas costas. Mas agora isso não importa. Deslizo as mãos pelo seu peito e procuro seu sexo. Encaixes. Percorro montanhas e desertos e não saio do lugar. Tempestades assolam casas. Gozos. Amores em conta-gotas. Muralhas da China dividem a cama. Carnavais fora de época invadem as ruas. Beijos de Arlequim. Pierrôs ensangüentados. Um rio verde e calmo deságua em mim e esconde em seu leito grandes moscas azuis. Colombinas e Judas em desalinho.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 25

Não se precisa mais do que um par de pernas indigestas para ser vítima de um assédio. E esta noite tudo que espero é ser devidamente subtraída. Um jogo de sedução no qual não há damas nem reis nem rainhas, apenas xeque-mate e cavalos mansos que se deixam acariciar. Olhos de cegos julgam meus atos. Oráculos não desvendam meu destino. Mandalas giram como cinzeiros encima da mesa. O garçom se aproxima com passos rápidos e certeiros. Um copo de gim. É o que se pede em filmes americanos. Carrego rancores e disfarço. As máscaras vestem meu rosto e são minhas feições mais verdadeiras. Homens passam e devoram pedaços indesejáveis de mim. Ruminantes. Sinto meu coração pulsar através da minha jugular. Tenho litros de amor a oferecer, mas não posso despejá-los sobre qualquer taça. Corda bamba. Cavalos relincham ao meu redor, ignoro. Um rapaz toca levemente minhas coxas e me convida para dançar. Aceito, sei das suas intenções e elas são exatamente as mesmas que as minhas. Suas mãos deslizam sobre minhas costas e tocam meus quadris. Tremo. Elas são macias e quentes e despertam despudores. Gaivotas galopam meu corpo. Dentes perfeitos mastigam minha carne. Peixes nadam em meu umbigo. Um rio verde e calmo explode dentro de mim. Remos me conduzem. Retalhos são sombras de coisas mortas.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 24

Meu corpo são cavalos arredios e sem freios, são ladeiras esperando precipícios, suicidas à beira do abismo. Meu ventre inchado ferve e eu espero lavas. Imagino a agilidade das mãos de Lúcio me tocando. Acordes e guitarras. Cifras e letras e posições. Lençóis e retalhos e migalhas de amores amanhecidos. Ele não está aqui e meus dedos parecem frágeis demais. Cafés em xícaras de porcelana. A noite está clara e me oferece mundos fáceis de manejar. Tudo está enquadrado em uma foto que não posso ver. O mundo perfeito das idéias. Enquanto ele cria universos, eu vivo entre marionetes sujas, amputadas e mortas. Anões me observam. Penso no sofrimento que não me fez maior nem mais forte, apenas atrofiou meus sonhos. Sinto a quentura da boca do leão que não me devorou. Angústias oferecidas em copo americano, para ser tomada em grandes goles. Esbarro em pessoas, entro. O bar cheira cigarro, bebida, suor e traição. Judas troca sua vida por dez reais e uma tragada. Sento sozinha na primeira mesa que tropeço. Agora espero paciente uma serpente se enrolar feito venda em meus olhos. Rios verdes deságuam no meu sexo. Guardo nas minhas impressões digitais minúsculas pedras vulcânicas. Desejo mãos imperfeitas devorando e corrompendo meus seios.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 23

Serpentes dançam sensuais em seu mundo. Não me sobra nada além de guizos e venenos. Você não foi capaz de me discernir. Eu não sou a comida que eu vomito, nem sou costurada com a mesma linha imprestável dos meus vestidos. Caracóis saem de suas cascas e riem da minha desgraça. Lúcido, você se confunde com seus flashs, com seus brilhos insuportáveis. Tripés. Lentes sujas. A sala agora tem a dimensão de uma fotografia 3 por 4. Os objetos fogem dos meus dedos, calos enormes atrofiam minhas mãos. Não sou Cristo, não tenho chagas, mas minhas feridas sangram com ardor divino. Não tente apalpar o impossível. Deus tentou me alertar, pena que nunca acreditei em ninguém. Cega. As traves incomodam meus olhos. Olhos na testa. Peixes mortos fingindo vigílias. Insulinas e agulhas, jamais aprendi a conviver com elas. Cateteres povoam meus braços. Morro e a morte cheira álcool e éter. Não posso continuar aqui esperando Lúcio voltar. Talvez ele não volte. Talvez tenha encontrado consolo em outros braços, em mundos menos complicados e exigentes. Um lugar onde as luzes penetrem docemente as janelas e haja violetas e gerânios na varanda. Aqui, a luz é vulgar e indecente e os cactos apenas sobrevivem sugando a fresta da minha escuridão. Pequenas cavernas se escondem no porão. Saio e procuro desejos. Sodoma e Gomorra e minhas ruelas estreitas espremendo vértebras. Alguém que possa tocar a minha pele e me causar arrepios. Um rio verde e tempestuoso escorre da minha boca. Mastigo carvalhos e cuspo flores. Minha vida descansa solene à margem.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 22

Escafandros se afogam no aquário da sala. Tento salvar os peixes, embora eles tenham morrido antes do meu nascimento. Mesmo assim seus olhos vítreos ainda me interrogam sobre mistérios que desconheço. Fósseis e lembranças invadem minha boca. Pequenos milagres assolam o mundo. Ressurreições sempre me incomodaram. Os lírios e o lodo. Era comum meu pai comentar dos mortos como se eles pudessem a qualquer momento pisar os pés frios e roxos na soleira da porta ou ligar o rádio e escutar uma canção. Eu não podia acreditar nos mortos, porém os fantasmas esbarram na minha existência, mastigam meus calcanhares. Parece que levei uma surra, meu corpo dói, minha alma dói, nada em mim germina ou nasce, apenas subtrai. Uma matemática incorreta e perversa. Volumes amontoam-se na insensatez dos meus braços. As fotos de Lúcio continuam penduradas no varal, revelando realidades inconjugáveis. Pierrôs e Colombinas numa quarta-feira de cinzas. A morte faz sentido somente para o florista. Caranguejos amanhecem no meu jardim. O esterco e a rosa. Entro e no meu quarto Caim adormece entre os lençóis. Serpentes nadam no rio verde e calmo que brota do meu ventre.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 21

Noites de desespero cego. Cavernas aterrorizam meus sonhos. Permaneço nua e distante. Estátuas de barro, pobres Pietà. Costelas e vísceras de Adão. Meus pés brotam e morrem em pinturas surrealistas. Preciso conter meu choro. As águas rolam e não mudam a direção do vento. Cata-ventos são moinhos sangrentos que escorrem do seu peito. Você não é capaz de mudar o mundo, mas sempre abre fendas nos meus sapatos. Meio-fio, homens abrindo valas e eu carregando os seus mortos, chorando dores que não sinto. Velórios de pequenos crimes. Você parte e me parte em mil. E cada pedaço de mim cavalga em tigres selvagens. Não chego a lugar algum. Os ciúmes e minhas overdoses e meus campos de papoulas devastados. E sua carne crua se misturando à lama e ao lodo de outras carnes. Não posso enxergar, porém sinto o gosto amargo do seu gozo escorrendo indecente em outros seios. Colares de pedras falsas. Jades. Mercúrio e ouro perdidos no mesmo rio verde e insípido. Não posso mergulhar até o fundo. Não posso acreditar na beleza dos corais nem na dureza dos carvalhos. Tampouco posso confiar nos escafandros pendurados nos nossos cabides.

domingo, 30 de novembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 20

Cupins infestam a cômoda da memória. Por vezes disfarçados no magnésio de tuas fotografias, que já não posso ver. Por vezes transmutados em canções antigas, de amor é preciso dizer. Por vezes escondidos nos buracos do queijo, ou no gosto de madeleines, pra quem gosta de madeleines. O rádio continua tocando estas canções absurdas e eu caminho pela casa esbarrando nos teus braços, nos teus sorrisos, nesse teu olhar impossível.Tira Lúcio... tira esse teu sorriso do meu caminho que eu quero passar com a minha dor. Não é ódio querido, como você disse, é só essa dor absurda. A tua felicidade sem mim que me dói como um filho arrancado das entranhas. Facas afiadas doeriam menos que tuas gargalhadas com os amigos e amigas na sala. Vem ficar com a gente! Você me diz. Nem pedras, nem carvalhos, nem submarinos de Julio Verne. Só eu pedindo por Edith Piaf até o fim.Só eu pedindo por Frida Kahlo até o fim.Uma mártir-mulher cravejada de pregos que chorou ouvindo Jonhy Cash, só porque ele não tinha piedade. Meus olhos são girassóis de sangue. Meu sexo é girassol de sangue. Tudo o que em mim sente é uma flor vermelha escorrendo pela alma. Se é que eu tenho isso. E, se tenho, ela fede a pólvora e enxofre, como a alma podre de Lúcifer, Lúcio. Eu te sou e tu me és. Como a tua rubrica dentro da minha rubrica. Como o teu nome dentro do meu nome. Como o gato preto que se esconde atrás da pele do gato branco. Tanto se me dão as cores... tanto se me dão as peles dos gatos, pois são os ratos que invadem o quarto em meio ao rio verde, que também pode ser vermelho, ou roxo, enquanto você continua a rir na sala e do canto dos teus lábios escorre um mel viscoso. Eu te quero bem desde antes do big bang e até o final dos planetas. Cristo é testemunha. O canto dos bem-te-vis tentam me convencer de que ainda há esperança, mas os meus sentimentos são o cadáver de um cão, ou a caveira de um animal qualquer brilhando ao pôr-do-sol de um dia de setembro. Volte pra lá, amor. Todos eles, todas elas, te esperam, porque você desenha sorrisos no rosto das pessoas.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 19

Nem pedras, nem carvalhos, nem submarinos de Júlio Verne. Apenas uma dor que beirava o absurdo. Trens descarrilhados nas minhas vértebras. Canções de agosto. O tempo passa em sentido anti-horário. Caminho em círculos. Espero ansiosa sua chegada. O medo é uma lesma vagando sobre azulejos. Penso nas lentes da sua máquina. Imagino posses. "Les Demoisseles D’Avignon". Agora as mulheres devem estar se oferecendo em taças de champagne, fingindo falsos interesses, grandes filosofias, que sempre se perdem na cama. Pérolas devorando ostras. Preciso dos seus olhos ou me perco nas reentrâncias dos meus abismos. “Voyage autor de ma chambre”. E você conhecendo mundos, se perdendo em Evas e verbos, acariciando outros sexos, vertendo verdades de outras entranhas. Côncavo e convexo. Nunca conheci o Paraíso. Maçãs e serpentes descansam nos retalhos. Não conheço a paz dos mortos. “O ciúme é uma faca cravejada de diamantes.” Talvez você não volte, há vários labirintos entre o Gênesis e o Apocalipse. O seu gosto ainda atormenta minha língua. Posso povoar mundos apenas das sobras de suas lembranças. Um rio verde e leitoso escorre entre minhas pernas. Olhos de peixe sempre acessos, minha eterna vigília.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 18

Barcos que não levam a lugar algum. Eu viajo amanhã. Ele me faz esboçar um pequeno sorriso. Dentes ruminando rancores. Falso. Pouco importa, ele não pretende comprar a briga. Leões continuam devorando suas presas entre os lençóis. Algemas... E eu aqui, sem chicote e sem mãos e com os olhos vendados. Abaixo a cabeça, sei que é inútil enfrentá-lo, seus flashs me cegariam. Sento no sofá e escolho ao acaso os retalhos, texturas e cores se perdem num poço fundo. Escuro. Não há cordas, nem mortos nem feridos. Agulhas atravessam o tecido e ele permanece no seu silêncio de domingo. Qualquer passo errado e ele despencará de um prédio de 10 andares. Engulo minha saliva e milhares de garras arranham minha garganta. Não dessa vez. Me calo. Formigas correm pelo meu corpo. Cobras saltam das minhas entranhas. E eu continuo sentada escolhendo a combinação perfeita. Aulas de yoga. “O ciúme é uma viagem sem ponto de parada.” Poderia impedi-lo de sair, trancar a porta, engolir a chave como aspirina. Ele beija meu rosto. Imagino outros beijos, imagino sua boca furtando outras bocas, invadindo outras coxas. Sinto Guernica dentro de mim. Poderia mergulhar até o fundo do poço e achar pedras verdes e preciosas, porém meus pés estão cansados de calcar o carvalho.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 17

Nossos corpos sob o sol do meio-dia. Vejo Frida Kahlo duplicada, comendo a si mesma. Observo nosso sexo.Colunas Partidas. Ferros atravessando minha vida, traves fechando meus olhos. Mãos cobrindo minha falta de pudor. Cavalgo sobre seu dorso. É frustrante devorar a incerteza de um desconhecido. Não vejo teu rosto. Luzes apagadas, frestas fechadas,vidros foscos. Cavalgo e imagino outra estrada, outras paisagens, janelas e olhares que jamais se abrirão. Um voyeur cego. Trilhos e ampulhetas dividem meus pensamentos. Sonho encontrar um caminho onde os lírios não conheçam o desespero das águas, nem desejem se misturar ao lodo. Flores de lótus não são plantadas em vasos. Ainda com as rédeas, percorro um campo de papoulas (a beleza é traiçoeira) e deparo-me com os mortos de heroína. Pico na veia. Passagem de ida ao Inferno. Filhos degenerados de Dante.
Despertam dores. No dia seguinte a paixão é lua minguante. Gozo nos lençóis. O amor é assim, arrumação de camas, ruas sem saídas, novelos de uma Ariadne perdida no labirinto. Há barcas para atravessar o rio verde que invade meu quarto.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 16

Lá fora o sol secava as poças da última chuva. As tempestades passam, a calmaria chega, tarde, mas chega, no entanto, não são capazes de apagar os buracos deixados no asfalto. Um piche negro esconde meus olhos. Desviemos. Eu sorrio ainda, naquela foto de anos atrás, ao redor dos olhos, as rugas miravam minha tristeza. Olhos parados, sem expressão, olhos de pouco ver. Eles flertavam com a morte. Ela chega devagar, furtando um dia de cada vez, como esses amores brutais de subúrbio, os quais terminam manchando o chão e as páginas dos jornais. Aos domingos ela parece chegar manca, tenho a vaga impressão que não há mortos nem ternos de domingo. Filmes mudos atravessam minha retina. Ele me fita nesses instantes, nesses segundos singulares nos quais a vida se liquifaz entre nossos dedos. Negativos suspensos por toda a casa. A morte descansando sob nossos varais. Roupas sujas. Há sempre meias sujas escondidas no fundo de algum armário, no abismo covarde de algum baú. Os carros passam e a fumaça fica. Minhas narinas estão atravancadas. Não sei se é alergia ou desespero. Ou medo de inspirar todo o lodaçal que atravessa minha rua. Formas geométricas se avolumam na minha cabeça. A menor distância entre dois pontos é a reta. Rios verdes correm avessos a minha vontade. Queria que os ratos e as flores jamais se encontrassem.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 15

Quando caminho sob esse sol que explode impiedoso na minha cabeça, sinto ódio de Lúcio, sinto raiva dos meus pés desobedientes e descalços, o asfalto queima minha alma. Procuro um bar, um café, um boteco, qualquer coisa que me tire do meio de todo esse lixo. Trilhos e galopes perpassam meu corpo. Cães mortos e fétidos fecham a avenida. Judas não se enforcaria em troca de míseras moedas. Traidores se escondem nos meus bolsos sujos. Os homens já não disfarçam seus pensamentos nos chapéus. Tanto sofrimento, tanta procura para acabar jogada na vala comum, onde não germinam flores nem palavras. Não consigo esquecer o cheiro forte de nicotina escorrendo fria dos seus dedos. As unhas duras e supostamente amarelas. A barba crescida lembra um comunista que não reparte nem o amargo do próprio cuspe. Não gosto de imaginar aquelas putas roçando o seu rosto sujo. Meu sangue ferve só de supor: “Você enxerga demais, mesmo sem ver nada!”. Imbecil, cretino! Como posso querer vê-lo com outras? Não sou masoquista, no entanto, as imagens me perseguem. Nosso amor sobrevive na carnificina da guerra, em meio a tiros e amputações.
- Me dá um café.
- Com açúcar ou adoçante?
- Não importa. Me traz a droga do café!
- Puro ou com creme? Prefere copo de viagem?
- Você é imbecil ou o quê? Se eu pedi um café é porque quero um café e só.
- Perdão, não quis incomodá-la.
- Vocês são todas iguais, a gente tira o pingo e não são capazes de reconhecer o i.
- Mais alguma coisa?
- Não.
- Pronto, o seu café puro.
- Obrigada.
Rugas envelhecem o asfalto. Eu poderia reclamar por mais alguns minutos, dizer que o café tá frio ou fraco. Cansei, xingá-la não me satisfaz. Nada poderá feri-la. Ela fala baixo e calmo, como as pessoas felizes ou conformadas. Ela é segura, não treme, caso contrário, eu escutaria o barulho da colher na bandeja.
O café ainda está quente. Pequenos vulcões irrompem dentro da xícara, a lava escorre negra e tímida. Poderia sorvê-la, mas eu não gosto de café. Tiros abrem fendas em minhas mãos. A moça do café passa por mim, poderia lhe dar uma rasteira e fazê-la esborrachar no chão, como tantas vezes tenho esborrachado, mesmo na simples descida do meio-fio.
Metade do café fica na xícara. Meu único prazer foi insultar a balconista. No final da tarde, ela nem recordará. Haverá outros clientes, outros xingos. Sentarão nas mesas outros infelizes. Um rio brota incoerente nas veias de um cardíaco.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 14

Fios elétricos se enroscam em meus sonhos. Pombas e corvos. No varal roupas brancas, pretas e alguns negativos queimados. Fico imaginando as pernas daquelas vadias. As bocas em desalinho. A câmera invertendo as imagens. Ele gritando: “O pior cego é aquele que não pode ver!”. Um tapa no meio assimétrico da minha cara. Às vezes, ele faz isso, mira no meio do rosto e enfia as duas mãos inteiras, ácidas na minha cara. Um abismo vermelho entre eu e ele. Ele dá gargalhadas quando percebe que meu riso se fecha. E eu tantas vezes perdida na inconveniência de suas mãos. Deixo-o falando sozinho. Ciclopes correm atrás de mim, me cercam, me mostram cordas fortes e longas: “Em terra de cegos, quem tem um olho é rei.”. Ando sem rumo, nas ruas as pessoas velam seus defuntos, algumas levam seus mortos nas costas. Tropeço em caixões. Os meus fantasmas são tão palpáveis, tão concretos, tão reais! Eles acabam riscando o brilho fosco dos meus sapatos. Algumas pessoas encostam-se a mim, pedem desculpas constrangidas. Que se fodam elas e seus constrangimentos. Por que não engolem suas desculpas? Seria mais fácil eu disfarçar minha cara de nojo e tédio. As buzinas me lembram aquela velha louca que não para de gritar, parece um rádio fora de estação. Um rio verde e calmo explode dentro de sua boca. Pequenos caranguejos devoram meu presente já morto.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 13


Acordo. Tenho saudade das minhas antigas crenças, dos meus antigos sonhos, dos meus pesadelos e dos rancores escondidos nas minhas impressões digitais. A santa Luzia, o escapulário que me protegia da forca. Levanto e bebo um copo da água. Sinto uma fisgada no dedo. Estou farta de atravessar muros dentro de minha própria casa. Fissuras abrem a sola do meu sapato. A morte sempre começa nos pés. Eu sei que sairei e metade da casa irá junto comigo, me entortando as costelas. Um caracol velho e sem asas. Tudo bem, acho que posso carregar minhas cruzes. Às vezes, até solto uma risada sarcástica, afinal, no meu dedo sinto apenas leves agulhadas, enquanto na mão hemorrágica de Cristo, as chagas se multiplicam e escorrem feito um rio caudaloso e sem curso. As padarias se enchem de bêbados infelizes,que adiam o fatídico momento de olharem para as caras enrugadas e indiferentes de suas esposas.Os filhos estão em algum beco, cheirando e olhando pra coxa de alguma puta desavisada. A cerveja espuma um lirismo que eles jamais conhecerão. Histórias da humanidade escorregam e se repetem em suas línguas. Nesse tempo suas mulheres se masturbam na cama, imaginando a boca molhada e ágil de outro homem. O gozo as acalma. Já não esperam. Apenas comem em silêncio. A morte avança em progressão geométrica. Um antigo lago verde e calmo nasce na indecência do meu corpo, pequenos acrobatas giram sobre a linha da vida.

sábado, 18 de outubro de 2008

Prémio Dardos - gentilmente cedido pela amiga Magnetikmoon



Aproveito a ocasião e o intuito do prêmio e o repasso a todos os membros da minha lista de blogs. O selo deve ser repassado para 15 outros blogs.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 12


Caminho, caminhos entre flores, asfalto e pedras. Todos os lugares me parecem iguais. Caleidoscópios e escafandros. Sirenes, buzinas, gritos, gemidos, buracos, pequenos abismos escondidos no meio-fio. Grandes agonias nas bocas dos velhos, pretensões idiotas nos pés dos jovens. Pássaros tolos e sem asas. Os loucos vomitam margaridas. Nada diverso, nem fora, nem dentro de mim. Orgasmos nascem e morrem entre meus dedos. Na minha cabeça sempre as mesmas palavras, os mesmos gritos, os mesmos tiros, as mesmas canções, partidas e chegadas, cartas sem remetentes, cheiro de enxofre em xícara de café. Nunca vi o diabo, mas desde aquele maldito dia, os tiros, a minha irmã,o resto dela... posso sentir o seu cheiro, posso sentir seu tridente entre minhas costelas. Queria esquecer, não consigo, dez pancadas partem minha nuca. Entro na banca, peço o jornal, apesar de saber que as notícias de hoje são versões das de ontem. Gosto de fazer objetos com jornais. Objetos cinzas. Afinal, de nada servem os excessos de cores. Todos os retalhos desbotam com o tempo. O corte no meu dedo volta a sangrar, estanco com meia dúzia de palavras.Ultimamente é pra isso que me servem as palavras, pra estancar meu sangue pisado. O antigo rio verde brota do asfalto. Caleidoscópios, escafandros e náufragos submergem.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Os quatro cavaleiros


157. Mal o dia amanhecera e eu enxerguei o primeiro cavaleiro. Primeiro me assustei os homens maus costumam se assustar por quase nada. Imaginei que fosse um daqueles delírios provocados pela raiva. Não, não era. Vinha vestido de branco, trazia um chapéu de feltro na cabeça e um 38 na cintura. Sua cara tinha a fúria dos assassinos que já sentaram a minha mesa, já compartilharam do meu ódio, já vomitaram do meu pão. A guerra começara.

Pôsteres de mulheres peladas se misturavam ao cheiro de mijo, café e carne crua. As paredes testemunhavam promessas de vingança. Camisetas e cuecas sujas esbarravam nos meus pensamentos: as grades, os cavalos, o tiro, a faca e o resto da merda toda que me colocou aqui. Poluem a minha mente meus inimigos de escola, os sempre foda, os sempre bons e eu sempre no fundo do poço remendando rancores velhos e recentes com linha imprestável. “Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo... E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil...”
O dia está claro, ofuscante e os ponteiros do relógio riem sarcásticos da minha cara de idiota. Embora aqui seja tudo tão imundo, eu sei que lá fora o sol queima o câncer de algum suicida. Os cavalos brancos me perseguem. Agora os parias brigam por restos, lá fora eu podia colher do pé frutas de mil reais, aqui eu espero a luta parar e recolho as migalhas. Não ligo pra eles, não os encaro, é arriscado demais. 157. Se não fossem os números já teria saído. O julgamento já teria acabado.

O sol se põe, adivinho pelo barulho dos ratos, eles preparam-se para sair das tocas. Esfreguei os olhos com os punhos fechados. Inútil, ele insistiu em aparecer, não pude fazer nada. Corpos suados e fedorentos aglomeravam-se ao meu redor. Era o segundo cavaleiro. Galopava coberto de sangue e vinha em minha direção. Trazia na mão esquerda um canivete. Alguns homens são fracos e corruptíveis. Meu corpo tremeu, não era medo do corte, era preguiça da luta, era nojo da lama do vale dos mortos.157. O inferno batia a minha porta. Cabala, mau presságio. É preciso saber ler os sinais. O rosto era anguloso, disforme. Tentei segurá-lo, abocanhei o seu braço musculoso, entretanto ele era forte demais. Cai, o canivete entrou entre minhas costelas, encostou-se a um dos meus rins. Apaguei.
A noite chegou, estava com a boca seca e amarga, era preciso beber, mastigar, rasgar um pedaço de uma coisa qualquer. Passavam um algodão molhado na minha boca. Queria socá-los, não podia, estava amarrado. Estava com fome e uma sonda enorme invadia meu corpo. Foi nessa hora, por volta das 11 horas da noite que eu avistei o terceiro cavaleiro. Ele vestia um terno negro e trazia dois soros, um em cada mão. Minha fome aumentava. Ele soltava gargalhadas. Ele parecia pesar meus pecados e contabilizá-los. 157. Esse é o número da minha desgraça.
A madrugada estava no fim e ainda não tinha dormido. Meu corpo queimava como brasa. Litros de suor e remorso atravessavam minha pele. O corte fedia, estava coberto de um líquido amarelo-esverdeado, uma espécie de decomposição precoce. Entrei em estado de delírio. Foi então que toquei meu dedo preso no quarto cavaleiro. Ele virou-se e pude ver seu rosto desfigurado. Era chegada a hora. 157. Essa foi a minha desgraça.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Do meu corpo comerás...

O tempo passa e sempre criamos novas combinações binárias, que nada explicam, mas que distraem nossos pesadelos. Somos picados eternamente pelas mesmas cobras, insistimos, beijamos a sua boca, extraímos seu veneno e dormimos enrolados em sua cauda, à espera da troca de sua pele.Um mesmo homem em um terno novo. Nas mãos ramalhetes de flores, não para reverenciar, é a cobrança dos mortos do dia anterior. Velórios e nascimentos todos os dias nas xícaras da mesa nunca posta. Apenas os amantes usam bandejas e geléias. Nós, creme de barbear, aparelhos e toalhas molhadas. Controles remotos, porque uma hora é preciso se desligar de nossas paranóias, amar menos, se doar mais. Viajar ao redor de nós e descobrir que esquecemos um pensamento, um absurdo no bolso do outro, essas insignificâncias tão urgentes que os outros, o outro não percebe, joga fora. Bilhetes e passagens de dois anos atrás. É o antigo costume de colecionar porcarias. Passo no meio-fio e recolho um braço esquecido do último abraço. Pensei em abaixar, mas que utilidade teria um carinho que se foi? Não sei, combinações binárias me fascinam, embora não as entenda. Vasos artificiais, você sabia da minha dificuldade em administrar pequenos seres vivos, sempre tão cheio de exigências! Gosto dos cactos, eles compreendem meu descuido e eu compreendo os seus espinhos cutucando a minha dor. Surpreendo-te com futilidades no meio da vida e você tão trágico, peças em três atos. Matematicamente incorreto, correndo sobre os fios de eletricidade. Nossos rostos nas pequenas poças de água do quintal. Envelhecemos. Amamos e envelhecemos, paixões furtivas aparecerão e eu perdoarei teu romantismo. Afinal, já somos tão parecidos que devorar um ao outro é estranho, é narcisismo, é canibalismo. Então,vamos caminhar, porque entre as pedras aparecerão alguns pássaros que farão parecer que o caminho é fácil, não se engane, eles logo passaram, eles sempre passam... No final, tudo é uma ridícula e necessária combinação binária.

sábado, 20 de setembro de 2008

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Anéis de Saturno

Mil lâminas cortavam minha face...

_ Você não presta! É uma puta dissimulada!
_ É mesmo?
_ Olha que eu te meto a mão na cara, sua vadia!
_ Verdade?
_ Não me olha assim, hein! Pára de fingir que está calma, porque esse seu olhar cínico lança um milhão de facas afiadas.
_ Eu quero mais é que você morra, você é um frouxo!
_ Quem aqui que é frou...............................................................................................................

Sai para procurar a constelação de Escorpião. Meu tio Bentinho disse que se a gente saísse à noite podia ver um escorpião andando no céu. Até o seu rabinho em forma de gancho podia se ver.

Era a coisa mais linda que eu já tinha visto. A lâmina alumiava tremelindando no peito farto da mulher gorda. O sangue vermelhinho, vermelhinho pelo chão. Os gritos estridentes vindos de todos os lados. Os faróis, as buzinas, as sirenes, os homens de branco... Mil mãos me apalpando, me fechando os olhos. A chuva veio devagarinho, devagarinho, clareando o sangue, escurecendo o asfalto. Meu corpo encharcado de água. Somente depois escapuliu difícil de meus olhos uma lágrima. Só então descobri, pela voz chorosa de minha tia, que o peito ensanguentado jogado no asfalto era o de minha mãe. As lágrimas ainda não amargas da infância se misturaram ao açúcar do pirulito ainda entre meus dentes. Eu não chorava porque minha mãe estava ali, estendida, vomitada no chão, mas porque a chuva, aos pouquinhos, ia desmanchando o desenho de sangue que se formava na calçada. Um desenho que eu nunca soube decifrar.

Um mês para o casamento e eu me sinto um esquizofrênico recém-saído do hospício, com as palavras girando desordenadas na cabeça. Olho para o meu rosto, minha barba negra e áspera desaparece. Vejo apenas uma criança assustada e infeliz observando o céu.
Alguns anos de convivência e todas as minhas imperfeições transfiguradas no rosto de um filho que me culpará eternamente. O rosto de um filho com as feições da minha mulher. Isso é nojento! A boca dele sugando seus seios.
Da minha janela eu vejo uma nuvem. Todos os dias a mesma nuvem, ela nasce para mim, se extinguirá com a minha morte. Eu me irrito com ela, tão infinita, tão irritantemente a mesma... Existiam nuvens na minha infância, mas elas se transformavam com uma facilidade impressionante, nessa fase eu nunca vi duas nuvens com a mesma forma, eram leões e pássaros disputando a mesma jaula.

MIL LÂMINAS cortando minha face e as agulhas arranham no vinil uma parte daquela música do Pink Floyd em que aparece um riso lunático. Olho para o espelho e minha barba continua por fazer. Ou, então, estou dentro de um ônibus lotado, os vidros todos embaçados, e numa letra de criança o meu nome escrito. Tento apagá-lo, ele não se move, como se fosse inscrito dentro do vidro. Quando faço menção de quebrá-lo, acordo, num total descontrole do destino de minhas mãos dentro de meus piores sonhos.

A agulha gira na última faixa do disco.

Não consigo caminhar até o altar. Existe nela o olhar vinho e provocador de minha mãe, em mim, a mão em punho e impulsiva de meu pai. A mesa está coberta de talheres, garfos, facas... são os presentes de casamento. MIL LÂMINAS ATORMENTAM MEU CÉREBRO. Na minha barriga a marca do meu último suicídio. Escorre uma lágrima, ela se perde nas linhas incongruentes de minha face. O copo de água com gelo transpira entre meus dedos, enquanto os cubos bóiam indiferentes no líquido translúcido. Lá fora, pela primeira vez, encontro a constelação de Escorpião, até sinto sua ferroada no meu calcanhar. O calcanhar de Aquiles, aquele do qual tio Bentinho tanto falava.
A noite está tão clara que posso até enxergar os Anéis de Saturno. Do meu pulso escorre um líquido escuro, viscoso e coagulante, do meu bolso furado caem delicadas flores de laranjeira, completando finalmente o vago desenho que nunca soubera formar através do pueril e trêmulo tracejado.

sábado, 13 de setembro de 2008

Cordão

Na estante ficavam à mostra várias fotos, o malabarista, a bailarina, o soldado de chumbo, o picadeiro, o palhaço que nunca me fez rir e a corda que nunca teve coragem de envolver meu pescoço.

Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome

Facas de dois gumes penduradas nas paredes denunciavam tua ânsia suicida. Não fora homem suficiente para enforcar seus últimos pesadelos. Covarde! Nem tivestes peito de fazer jorrar teu ódio ralo desses pulsos finos, brancos e esquálidos... Os suicidas farejam lentos no lado negro e infinito do tabuleiro. Uma travessia longa e bestial. Ela gargalhando feita esquizofrênica: “Um homem de 1,70 quase não é homem”.
Venha a nós o vosso reino seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu.

Não gostava de olhar para sua cintura, eu via cobras saltarem do seu umbigo numa acrobacia louca, perigosa e incompreensível.

O pão nosso nos daí hoje.

Anões povoavam seus sonhos mais pervertidos. Metade da vida já atrofiada no nascimento, por pouco fórceps não deformam seus pescoços. Causavam-te pena e soberba aqueles pedaços de gente que traziam transfigurados na face a morte vindoura.

Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos têm ofendido...

Brinquedos quebrados enfeitavam seu quarto. Você gostava de rir da desgraça alheia. Era teu patético divertimento, saber que algo no mundo sangrava com uma dor mais pungente do que as tuas chagas secas de ressentimento. Um Deus sádico regia teu universo.
O jardim estava sempre coberto de rosas brancas. A cor excessiva das flores te incomodava, parecia uma afronta. Lembrava do suicídio que nunca teve força pra cometer, gostava de acreditar na palidez de tudo. O sangue corre tímido e anêmico nas tuas poucas veias.
A água da privada girando, girando... Um velho disco riscado vomitando aquele mesmo trecho “... batidas na porta da frente é o vento... eu bebo pra ter argumento... ele zomba do quanto eu chorei...”. Despejo o resto da bílis no vaso. O espelho alonga minha cara. O barbeador na pia me entristece, há anos não sou mais menino, mas ainda posso ver nitidamente o talho que fiz no meu rosto com cinco anos me barbeando pela primeira vez, ainda escuto os gritos desesperados da minha mãe e meu pai dizendo: “eu também já fiz isso mulher!” Esse espelho me envelhece.
Na cama você era gigante de cem braços. Sempre me esmagando, me fazendo pequeno e sarcástica repetia!: “Um homem de 1,70 quase não é homem”. Todos os meus membros tentavam percorrer seu corpo, numa luta insana e inútil, pequenas lâminas rubras brotavam da sua pele dilacerando meus dedos, uma guerra de perdedores. O sangue escorria incolor entre seus seios, mas isso não te saciava. Cartas de baralho em cima da cama, você jamais se cansava de jogar. Nunca descobri se eu era o Coringa ou um simples palhaço que te fazia gargalhar feito uma insana.
Deu olhar tinha o encanto de fogos de artifício e como eles não bastavam dois minutos e eu já podia sentir sobre os lençóis o peso de pólvora, chumbo e enxofre. Essa nuvem de fumaça nunca mais me deixou respirar em paz. O gosto de fósforo e desodorante barato continua nas frestas grandes dos meus dentes, seja talvez, a causa de todas as cáries de minha boca.
Garrafas de todas as cores estão dispostas na prateleira. Azul, roxo, rosa, amarelo, verde, vermelho. Um copo de cherry. Todo teu sangue me escorrendo goela abaixo. Um porre o teu rosto se duplica na minha cabeça. Os carros passam rápido como flashs, lembranças de uma peça que nunca assisti. As pessoas me encaram como se eu tivesse cometido um assassinato. Vejo miolos espalhados pelo bar. Não se olha um homem com as esquinas dos olhos, nem se fixa em sua retina cega por mais de um minuto. Posso vê-la jogando convulsivamente a cabeça para trás, posso escutar ela gargalhando: “Um homem de 1,70 quase não é homem”.
Ao seu lado eu era sério, não ria e só me permitia pensar de olhos fechados, como quando criança sonhando ver o sol do Chile nascendo entre os montes, seus seios imensos na concha ridícula da minha mão, qualquer descuido e... Você seria capaz de roubar todos os meus segredos. “Um homem de 1,70 quase não é homem”. A sombra da cruz na porta invadia o quarto. Você se incomodava, eu me ausentava, sabia da sua saudade da época em que trabalhava com um grupo de mambembes, percorrendo o mundo, cada dia vestia com um fantasia diferente. Encenando vidas interessantes, adiando essa insipidez hoje estampada na tua pele, esse câncer lento que corrói tua alma. E agora? A que se reduzira? A uma boneca de porcelana barata trancada sempre no mesmo quarto implorando a Deus um gozo rápido e indolor, vendo infinitamente o sol nascendo no mar e se pondo na esquina sem movimento da nossa casa. Era só o que eu podia te oferecer, miligramas do meu esperma. Levantava nua e colocava a cruz embaixo da cama. Achava tudo aquilo profano, mas me calava “... perdoai as nossas ofensas. Amém”. No criado-mudo um cinzeiro e um vaso com flores: “Mares de lírios, essas suas mãos lívidas e mortas tecendo ausências”.
Ultimamente minha pele cobria-se de uma penugem loira, que me tornava ainda menos atraente para seus olhos de tigresa no cio. Choros de criança e barulho de chocalhos estouravam meus tímpanos.
Os garçons, as garrafas... no fundo todos nós um dia sentimos vontade de fugir com o Circo ao lado do Homem-bala. Agora somos apenas tolos espectadores esperando o Circo passar só mais uma vez na cidade de terra e descobrir como o mágico tirava tantos coelhos da cartola. Os líquidos derramam-se sobre os corpos. Coágulos nojentos despencam da sua boca. Vinte e cinco anos e rebola feito uma vaca de dezoito. Rebola como se ainda estivesse num bordel cheio de vedetes. E agora? Como posso acreditar que um porre irá me salvar de tudo isso? Buracos se abrem ao redor do meu banco. Rodas gigantes, carrosséis, cavalinhos de pau. Sonho todas as noites com você, mas não consigo enxergar seu rosto. Cadela, sempre com tinta na cara sardenta.
Sonho todas as noites com o sol do Chile nascendo na concha ridícula das minhas mãos. Minha língua cortante percorrendo cada centímetro das suas costas.
O homem empilha as cadeiras vermelhas do bar maquinalmente, é o tipo que trepa com a esposa em cinco minutos e apesar da infelicidade não tem paciência para uma amante. As pessoas desaparecem sem deixar vestígios. Apenas alguns filtros amarelados de cigarro barato e restos de cerveja derramados no chão. Quarenta anos e o meu quadril gira no compasso daquela vadia. Chocalhos coloridos invadem as órbitas tortas dos meus olhos.
Um anjo negro de asas púrpuras rompe do seu ventre, deixando um abismo no lugar. Você se ajoelha e se contorce fingindo arrependimento: “...bendito é o fruto do vosso ventre Jesus...”
Só lamento por ela não sentir as dores do parto.
Respiro aliviado, aquela vadia não saberia ser mãe. Cuspo uma saliva amarga, acendo o último cigarro do maço. “...perdoai as nossas ofensas. Amém”.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 11

A Elenir tem razão quando diz que a nossa conversa não passa de resmungos. O que ela não percebe é que nosso relacionamento nunca passou de balbucios. Não foi o derrame que tirou as palavras da boca do meu pai, foi sua brutalidade, seu fanatismo, seu horror ao Diabo, mesmo recolhendo todos os dias asas de anjos caídos ou dragões em fúria. Agora parece um louco preso no inferno, um demente juntando peças de um quebra-cabeça inexistente. E seu único companheiro é o pássaro negro, compondo as canções mais tristes do mundo e uma reprodução barata de Noite Estrelada. Eu nunca entendi como um homem bruto feito ele poderia gostar tanto daquele quadro. Mas ele gostava, o tempo passava, e o quadro continuava lá, na varanda, atrás da rede, eu colocava a mão e sentia a folha enrugada de umidade, água dessa chuva fina e estranha que o tempo traz. É como se ele imaginasse que a dor tem aquelas cores. Toda vez que estava calado, sentava naquela rede, com o olhar pro infinito e talvez nem mesmo Deus soubesse o que se passasse pela sua cabeça. Era só eu aparecer e ele resmungava: “Cuidado com as traves que o mundo enfia nos teus olhos”. Pra mim, aquilo parecia ridículo, quem mais do que ele me empesteara os olhos com ciscos, galhos, cinzas e traves? Nunca, antes de sair de casa, eu tinha visto o mundo sem sua lente de pavor e amargura. E ainda hoje escuto os gemidos do pássaro negro, desde que meu pai lhe furou os olhos, ele não se agüenta de tristeza. Havia um imenso abismo entre o mundo e o pássaro. Uma imensa gaiola que jamais seria aberta. Ele era culpado de um crime que não tinha consciência que cometera: “Se teus olhos te fazem pecar, arranque-os”. O rio verde e calmo despenca no meu quarto, são imensas colchas de retalho barato. Tento mergulhar, os olhos me impedem. Olhos de peixe. Carvalhos em vigília.
PS: Aproveito para comunicar meus leitores que tem um ensaio doDaniel Lopes (www.pianistaboxeador21.blogspot.com) intitulado "Um timaço argentino" no Amálgama. Acessem: http://www.amalgama.blog.br/?p=76

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O Mágico


Por mais que eu carpisse, sempre estava empestado de amores-perfeitos em volta do poço. Nunca entendi. O solo era ruim e nunca chovia no meu quintal. Aliás, em toda minha vida devo ter presenciado umas duas tempestades, o resto eram chuviscos, serviam apenas para levantar o cheiro de terra.
Ao sair do quintal de casa gostava de olhar o tapete vermelho na soleira da porta, às vezes, ficava com as marcas do meu sapato.
- Sabe o que me deixa feliz meu pai?

- Não, mas deve ser alguma coisa que deixa alguém triste. Desde pequeno você era assim. Gostava de atirar pedras nas rolinhas, não pra matar, você não era capaz dessa bondade. Você gostava de vê-las agonizando, perdendo o fôlego aos poucos.
- Todo moleque atira pedras nos pássaros. O senhor nunca atirou, meu pai?
- Não, não atirei.

- É, acho que não mesmo. O senhor preferiu guardar desde a infância as pedras no bolso. E agora atira todas em cima de mim. Você esqueceu que sou seu filho?
- Como poderia? Você é tudo aquilo que sempre abominei em um homem. O destino é mesmo irônico!
- Eu não sou esse monstro que você diz.
- É, talvez não. Você é apenas um mágico. As coisas desaparecem depois que você as toca.
- Voltando ao o que eu dizia, sabe o que me deixa feliz? Saber que no final todos sempre acabam no fundo do poço.
- Isso te deixa feliz, não é? É a mesma alegria que você encontra quando mergulha seus olhos no fundo da cartola. Sinceramente, não sei da onde você saiu.

- Meu pai, quem saiu aos seus não degenera!
- Muitas vezes os provérbios afirmam grandes besteiras.
- Você lembra o que vovó dizia?

- Não.

- De boa árvore nunca sai mau fruto.
- Ela deve ter esquecido de dizer que, às vezes, o fruto apodrece ao se misturar com outros.
- Papai, papai! Não tire o corpo fora!

- Não se preocupe, eu não tiro não. Todos os dias peço desculpa a Deus. Espero que ele me perdoe.

- Eu também espero papai.

- O perdão não combina com você.

- Queria dizer meu pai que eu já perdoei o senhor.
- Pena que o seu perdão não vale uma cartola furada!

Ela nunca me olhava. Parecia sempre esperar alguém que nunca chegava. Ficava atento, mas jamais descobri pra quem ela entregava as flores. Era um pedido de perdão ou uma promessa de luto? Não sei. É tarde e todas as esquinas desapareceram com a escuridão e eu não tentarei tirá-las da cartola, embora eu acredite que elas podem ter se escondido por lá.
Afinal, pra que serve minha cartola? Ela só serve pra esconder as loucuras, os assassinados, as manias que rondam minha cabeça. Muitos mágicos fazem brotar coelhos de seus chapéus, do meu não surge nada, as coisas apenas desaparecem. Meu pai, minha mãe, meus irmãos, minha esposa, meu filho, todos se foram, como se houvesse um labirinto indecifrável no fundo da minha cartola. Já tentei fazê-los ressurgir, mas é impossível. As mágicas nunca funcionam comigo. Desde criança eu sabia que não seria um mágico de grandes espetáculos, apenas de pequenos truques.
Olho pro meu casaco de barata pendurado no biombo e sei que a qualquer momento eu posso ser esmagado por um pé distraído. Sempre tive muito mais vocação para palhaço, embora as pessoas digam que a maquiagem não poderia disfarçar minha cara de psicopata nem minhas olheiras de homem descrédulo.
Na esquina eu volto a ver a mulher negra com um maço de rosas vermelhas. As rosas estão envoltas num jornal velho, amarelado, com marcas de urina de gato.
Embora não pareça, eu adoro discutir com ela. Passam diante dos meus olhos cenas de jornais sensacionalistas. No quintal, o poço permanece em silêncio, as flores continuam a germinar em volta dele. Tiro a cartola da cabeça, ela está furada. “Você parece um poço sem fundo de tanta ambição!” Minha mãe dizia isso como se fosse um crime querer progredir na vida.
Agora todos os meus dias são uma segunda-feira (Por que será que há tantas segundas e tão poucos sábados na vida?). Mas isso não é uma sensação ruim, é uma sensação de alívio. Normalmente olhava pela fresta da porta e via apenas um pedaço do jornal amarelado que encobria as rosas e uma mão morena e encardida que se confundia com ele. Tinha uma vontade louca de esfregar aquelas mãos com uma escova de cerdas duras, entretanto, logo a vontade esvaecia, então, eu fechava a porta e ia até o quintal pegar água do poço, tomava um gole e sempre vinha um gosto enjoativo de ferrugem. Uma ânsia que se assemelhava a uma angústia. Engraçado, uma angústia própria dos homens bons e honestos. E eu não era bom, tão pouco honesto... Quantos homens eu furtei no fundo da minha cartola sem dar-lhes chance alguma! Meu pai riria se soubesse que uma lágrima escorreu do meu rosto. Diria com expressão impiedosa: “Lágrimas de crocodilo! Qual é o gosto da sua vítima dessa vez?”
Ele jamais acreditou que eu fosse capaz de sentimentos raros. E ele está certo. Não sou dado a sentimentalismos. A única coisa que me dói na vida é um molar. Desde o ano passado o dentista falou que precisava de canal. E daí? Talvez uma dor aguda me torne mais humano. Me torne finalmente o filho que a minha mãe sempre sonhou em ter: “Eu pedi tanto! Pedi tanto pra Santa Terezinha! Mas não adiantou, olha só! Que desgosto, meu Deus! Deve ter sido aquela promessa! Só pode ser! Eu prometi plantar umas rosas pra minha santinha e olha aí! O regaço dela seco, sem uma florzinha sequer!”
Ah, mamãe! Como você foi ingênua! Você acha mesmo que essa santa tem alguma coisa a ver com isso? Eu já nasci atravessado, com o cordão envolto no pescoço, foi meu primeiro suicídio. Sai de um poço pra vim parar em outro. Você vivia reclamando, de uns tempos pra cá, que se calou. Uma sonhadora! Eu sempre avisei: “A vida não é fácil, no final todos acabam no fundo do poço ou na beira dele!”. Seu otimismo me enojava. A senhora e o meu pai foram feitos um pro outro. Eu não entendo essa mania que pobre tem de achar que tudo esta sempre muito bom. A senhora agradecia por tudo e até mesmo o fato de eu ser um péssimo filho, era motivo pra agradecer, a senhora achava que era uma provação. Eu poderia dar voltas e voltas ao mundo se juntasse todos os seus terços e suas rezas. Quanta Ave Maria! Será que Deus a perdoará?
Queria voltar pro Circo, não posso, um cheiro estranho de fumaça e plástico me causa sonolência. Olho em direção ao poço, as flores insistem em nascer, por mais que as corte, arranque-as, elas voltam e elas florescem rapidamente. É um contraste irritante. O poço e as flores. Lembro da mão preta e das unhas encardidas da mulher da esquina. Olho por cima do muro, ela continua lá, estática e as rosas continuam frescas como se estivessem sido colhidas há pouco. Queria poder cortá-las uma a uma, como se fossem pragas. Não poço, não posso. Ranjo os dentes. Sinto eles trincarem como louça. As formigas andam ao redor do poço como num ritual, param, se cumprimentam e voltam a girar. Farejam feito cães sarnentos. Odeio os latidos dos cães, mas preciso suportá-los . Atrás desse muro há um cão enorme que ladra toda noite. Ele para apenas nas noites de chuva, no entanto nunca choveu no meu quintal. “Os cães ladram e a caravana passa”.
Tento dormir. Não consigo, o filho daquela demente não para de gritar. Eu já cansei de avisar, não adianta. Eles não acreditam, minhas palavras desaparecem como num passe de mágica: entram por um ouvido e saem por outro. Idiotas! Aquela louca não para de lavar pratos e panelas, eu não AGUENTO MAIS, a minha cabeça dói. Eles já não estão dentro de casa, e eu os escuto, só pode ser castigo! FILHOS DA PUTA! FILHOS DA PUTA! FILHOS DA PUTA!
Finalmente o sono vem. Olho para o tapete vermelho na soleira da porta. A lama negra dos meus pés estão ali, fétida e real. Eu sempre os alertei, a todos eles. Eles não acreditaram: “No final, todos acabam no fundo do poço”. Ainda hoje carpinei em volta dele e mesmo assim eu já posso sentir o cheiro de amores-perfeitos. Na esquina, a mulher negra com o maço sujo de rosas vermelhas continua a espera. Eu só não sei se é um pedido de perdão ou uma promessa de luto.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A Rotina do Tempo

Os meus dias também são longos e me arrasto. Carrego uma mochila de pedras nas costas, porque assim evito a tentação de apalpar a tristeza com as mãos.
Mas, diferente da maioria das pessoas, os dias sempre siameses não me incomodam. Nem me importa a previsibilidade dos matemáticos, porque apesar de toda lógica, eles não podem evitar a perfeição da medida aúrea que esgana o tempo. Também diferente de alguns, jamais deixei de ler um livro porque conhecia o seu final, ninguém consegue retratar as minúcias e são exatamente elas que me atraem.
Quando me olhas e achas que tenho orgulho, não se engane. Minha cabeça erguida não é pretensão, é medo, é refúgio, é fuga dos vôos rasantes dos dragões que se desprendem de mim.
O amor são dedos vasculhando na ferida e dói. Às vezes, minha dor são pássaros negros, de olhos furados e canto triste. Eles são insanos e cavalgam sem piedade no meu corpo.
Sossegue querido, cada centímetro da minha pele conhece o seu desespero. Relaxe, hoje é terça, venha e povoe mundos dentro de mim enquanto as crianças colhem pipas e ilusões na ventania.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 10

As facas estão a um centímetro da minha jugular. Não tenho medo, há muito tempo o sangue escapa do meu corpo. Olhos de peixe. Finjo dormir enquanto minhas pálpebras permanecem bem abertas. Por anos carreguei toras de madeira nas costas, pecado, crucifixo. Agora não posso evitar essa fogueira interminável, alastrando árvores, carregando carros, derrubando casas, afogando gente. Será que as coisas ressurgem mesmo das cinzas? Tenho minhas dúvidas, já provoquei muitos incêndios, mas não tenho visto nada de bonito nascer deles.Vênus abordadas. O sol bate na minha janela, aquece as cortinas, os retalhos, os restos de mim... Posso escutar o Lúcio: “Você não está vendo o sol que está lá fora?! Feche essas cortinas!” . Não, não vejo, embora o alumínio queime as pontas dos meus dedos. Não adianta, eu nunca me lembro, e é sempre a mesma fumaça que engulo. E ele nunca se preocupou, a fumaça está me asfixiando e ele nem percebe. A voz da minha irmã ecoa no velho quarto: “Deja me ajuda, me ajuda, não consigo respirar”. E daí? Não foi a asma que a matou, foi o ódio saído daquele maldito revólver. “O ciúmes é tocha em boca de alcoólatra”. E Happiness is warm gun. O que posso fazer? Me fingir de idiota como a maioria? Fingir que sou cega? Fingir que o seu sexo povoando mundos não agride o meu amor? Espadas perfuram meu útero e nem por isso gozo. Lâminas me cortam e nem por isso sangro. Eles podem gritar, eu não estou errada. Eu sei que muitas vezes abismos enganam meus pés e a fumaça que entra por aquela janela atrapalha e faz arder os meus olhos. Olhos de peixe. Mas ainda assim eu consigo caminhar com meus próprios pés. O rio verde e calmo ainda despenca no meu quintal. Vejo cardumes boiando. Milhares de olhos me observam e eu tropeço invisível sobre as pedras.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 9

“O ciúmes mata como guilhotina”. Recolho como louca os retalhos da colcha que estou terminando. Todas as cores num só pedaço de tecido. Elenir sempre diz não entender como sou capaz de colocar todas essas cores em tão perfeita harmonia! Nem eu, às vezes, imagino que são infinitos tons de cinzas e quando vejo, está pronto. Isso me comove.
Desço as escadas devagar. Último andar. A rua parece um campo de batalha. Guernica. Escuto tiros, mas não procuro ver de que lado estão os canhões, nem de onde vem o cheiro de pólvora. O diabo passa e pouco importa em que porta ficou preso o seu rabo. As buzinas me enlouquecem, sons de metal, ensaios de banda de rock, ratos e baratas caminhando falsos pelos bueiros. As pessoas passam rápido, esbarram no meu desespero. Elas não percebem, usam as mãos para estancar as feridas que devoram seus ventres. Fogueiras se formam debaixo dos meus pés. O sol chega às vistas dos mais sensíveis. Lúcio está longe. Ele não se importa comigo, vive rodeado pelas fotos daquelas vadias. Poderia enforcá-lo com aquele varal, ele sentiria o próprio veneno, saberia o gosto que devassa minha língua. Faria com que ele engolisse todos aqueles peitos e pernas e braços e bocas, o seu mosaico erótico. Imbecil. Pensa que sou idiota, que não percebo suas estratégias de fuga. Poderia voltar correndo, entrar naquele estúdio e picar todas aquelas fotos indecentes. Não adiantaria nada. Ele tiraria outras fotos, passaria mais tempo com aquelas piranhas e depois se trancaria naquele quarto escuro até que cada curva daquelas mulheres se tornassem nítidas e palpáveis.
Um rio verde e calmo invade meu quarto, é incrível, ele abriga pequenas ilhas... da janela, a mesma fogueira se extinguindo, aquela que antes devorava meus pés e meus sapatos.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Conto: Alvo



A
L . V
O

Observava sua boca fina e estéril. Quem a olhava jamais poderia imaginar quantas palvras formigavam ali. Batom e biles se misturavam num gosto amargo e solitário. Sua boca sugando o cigarro, ou seria o cigarro sugando sua boca? Descia a escada helicoidal mexendo duramente o quadril magro.

Se não fosse tão bonita seria insuportável! Gritava feito uma louca: "Você é surdo, mas que droga!". Nessas ocasiões eu via a úvula da minha mãe balançar, uma gelatina indigesta. Essa é a imagem que me prende a ela: uma histérica de coque na cabeça, no lugar da face um enorme rasgo amarelo de nicotina e dentes negros de infelicidade. Fui parido um pouco por essa cor abismal.

O saxofone pendurado na parede. Conchas do mar na escrivaninha. Ela adorava escutar conchas do mar. Eu adorava ver meu saxofone ali; onipotente, expressivo, intimidador. Nunca aprendia a tocar. Mas ele, ali, pendurado, me fazia forte. Eustáquio. Odeio esse nome. Por que não me chamo Rodrigo Paulo Marcio João José????????? Marcela eu gosto, se ela fosse mais doce....

Esse vizinho imbecil martelando, martelando, martelando... toda hora, todo dia, me lembram as infernais badaladas do relógio da casa velha da minha vó.
Quando estou fodido e triste, gosto de sentir sob meus dedos as reentrâncias do vinil, as agulhas arranhando a roda negra: "Folha Morta" de Ary Barroso.

Ela me odeia, ela repugna meus olhos burros de incompreensão. Uma espécie de punição, autoflagelo. Ela é minha pérfida Ariadne, ela me dá o novelo para atravessar o labirinto e quando estou perto da saída, ela o puxa, pelo simples prazer de me ver perdido entre centenas de maçanetas e nenhuma mão. Milhões de vozes mudas ecoam nos meus ouvidos. PAVilhões cheios de gente... Marcela rindo da minha desgraça. A boca amarela-preta da minha mãe...

Poderia dar um tiro em meu ouvido, mas nasci surdo e me recuso a não escutar o estrondo da minha morte. No vinil gira um réquiem do Debussy. O sax toma toda a dimensão da sala.
Do labirinto

escorrem

metros

e

metros

de um novelo

macio e vermelho.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 8

Jorrava preto como água de lama o café da minha mãe. Adorava aquela fumaça, no entanto, agora ela parecia um misto de enxofre e pólvora desprendido do revólver que matara minha irmã. Cinza como o resto dos olhos dela na xícara, inerte e gelada como seu corpo. Minhas mãos tremiam, estavam perto de uma convulsão: "O ciúmes corrói, é ácido, é pico de heroína nas veias de um cardíaco". Minha trristeza não entendia aquelas palavras, talvez nunca fosse capaz de digeri-las. Vomitava. O café quente explodia na minha garganta seca. Queria correr, correr, correr, cavalgar entre trilhos sem cavalos, eles atrapalhariam. A única imagem que me vinha na cabeça eram os caranguejos, os manguezais. O vestido preto e vermelho era peça de um mosaico mórbido. O sangue emprestava vida aos lírios das margens. Vomitava. Um líquido negro e morno escorria pelos cantos ignorantes da minha boca. Já não podia respirar, fora minha primeira crise de asma. Belinha jamais teria crises de asma, seu corpo esfriava em cima da terra que borbulhava. Queria correr, queria falar com minha vó, queria pedir ajuda a Santa Luzia, queria apertar entre meus dedos de parkinson o velho escapulário, queria arrebentar terços. Queria meter uma faca no coração doente do meu pai, ele só sabia repetir: "O ciúmes mata, é faca sem gume". Era em meu peito que a faca entrava. Era dentro dele que ardia, velórios de meninos. Não podia voltar no tempo, não podia parar com o meu rosto aquela bala. Se pudesse, talvez também não parasse. A morte dói, mas a vida são agulhas torturando as pontas dos dedos. Com os anos, os olhos tão lindos de Belinha, tão azuis, se tornariam gastos e opacos como os meus. Parados, olhos de peixe em vigília. Queria correr correr correr e rasgar minhas roupas, mergulhar no rio sempre calmo e verde, que insiste em se esquecer no meu quintal. Um rio sem taboas e sem lírios... Vejo apenas o brilho das grandes moscas azuis e isso já é o começo de um alento.

sábado, 16 de agosto de 2008

Sem título

Não faça que eu me iluda querido.
Eu posso dormir e acordar,
mas quando olho pela janela
o cemitério ainda abre novas covas
para seus velhos mortos.

No jardim brotam flores,
embora amarelas,
elas exibem suas carnes,
feito as putas que habitam
as esquinas de nossa casa.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 7

A minha irmã era o único ser do mundo que me entendia, não que ela soubesse desse fato. Aliás, ela ainda não sabia de nada quando aquela bala atravessou sua cabeça e lhe deu uma grande rasteira. Não sei se algum dia acharei isso ruim. Não acredito que a vida tivesse sido muito gentil com ela. A morte é mais excitante, são cavalos vermelhos e selvagens. Se pudesse escolher, eu escolheria a morte, para poupar a pobre da Belinha. Meu pai cuspia pelas frestas feias dos seus dentes: "O ciúmes é faca de corte lento, primeiro estraçalha a carne, depois vomita o sangue."

Belinha tinha o sangue fraco, não pude olhar, mas desconfio não ter escorrido nenhum líquido de sua cabeça. E de pensar que seus olhos eram tão azuis! Só me recordo que eles começaram se tornar tão cinza quanto o chumbo que, por engano de Deus ou do Diabo, se alojou feito pensamento em seu cérebro. Imagino quantos gritos foram estrangulados naquele instante. A fumaça preta do café se misturava ao cheiro amargo da pólvora. As lágrimas não se formaram nos meus olhos. "O ciúmes mata feito trem descarrilhado!". Eu não compreendia aquelas palavras, nem me importava com elas, não compreendia o enxofre misturado com toda aquela poeira. Talvez tenha sido a primeira vez que ouvi o zunido das primeiras moscas azuis.

Escuto ao longe o barulho do rio verde e calmo ou talvez, seja apenas o líquido da sua cabeça, que depois de anos resolvera jorrar.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 6

Traves sempre atrapalharam meus olhos. Escuto a voz do meu pai pregando:"O ciúmes mata como erva daninha". Nunca quis dar razão a ele, no entanto, como posso discordar sentindo ramos e folhas me sufocando? Sou contra toda sua doutrina religiosa e fanática, porém, não tenho como negar que a vida lhe ensinara algumas verdades. Assim como está ensinando a mim. São brasas fervendo perfurando minhas pupilas já cegas. Não posso esquecer o rosto angelical da minha irmã, nem tudo que lhe aconteceu depois. Nem mil anos me faria esquecer. Era singular o seu jeito de se agarrar a mim, parecia que jamais me soltaria e não soltou: "Vamo Janira, vamo brincar! Você já viu meu cavalinho? É mais bonito que um de verdade!". Nesse tempo, minhas vassouras falavam com tanta facilidade! Não resistia, às vezes, quase morria de ódio, não queria brincar feito uma criança bobona, mas tinha dó do mundo perfeito e perdido no meu quintal. E aqueles olhos tão azuis, tão meigos... Nada tinham a ver com os meus, tão negros, tão opacos, tão cansados, olhos de viagem. Meu pai gritando: "o ciúmes mata feito picada de cobra venenosa". Naquele tempo as palavras eram vazias e só diziam o que ecoavam. Eu sentia o peso da mão do meu pai. Quando olhava pra fora, eu pensava que aquele rio, tão verde e calmo eram as lágrimas que não podia soltar. Eu pensava, apenas eu sou responsável por todo esse limbo. Quem pode saber? Corpos de crianças mortas adormecem nas margens, entre pedras e lírios.

sábado, 9 de agosto de 2008

Conto: Roleta Russa


“When i was just baby/my mother told me
son alway be a good boy/and never play with guns"
(Johnny Cash)
Galopes atravessam a sala.
- Chiiiiuuu!!! Você tá ouvindo?! Toda noite é assim, nesse mesmo horário, eu escuto barulho de tiros.
- Eu não escuto nada.
- Vamos, encoste os ouvidos na parede.

- São pequenos estalos.
O fogo invade a minha janela. Uma grande fogueira domina o céu. Um cheiro de plástico inunda a cidade.
A única mulher que amei me abandonou. Disse que seria dançarina de Circo, pra mim se tornou uma prostituta. Uma puta dançando sob a lona. Vai-se o amor, fica o ódio. Ainda sinto as pancadas de seu martelo massacrando a carne de segunda. Nessas horas, ela comentava: “Olha ali, de novo aquele caminhão em frente ao mercado”. “Ele está recolhendo o resto das carnes, as migalhas de sua carnificina. Os ossos indigestos que não pode roer”. Ela contestava como um velho sábio: “Comeu a carne agora roí o osso!”. Segui seu conselho: estou roendo os ossos, mas quem comeu a carne foi ela. O resultado são dentes cariados, dois molares cheios de amálgama e estorninhos voando sobre meu estrume. As aves não se cansam de zombar da nossa falta de asas e de sorte.

Muitos tentam me convencer do milagre da vida. Poucos têm convencidos a si mesmos. Messias se deixou pregar na cruz. Tenho encontrado muitos cadáveres atravessando com pés alheios o mar vermelho. A fé não os faz boiar, eles simplesmente afundam. Formigas remexem em seus restos. Caranguejos os devoram. E eu que era homem, durmo feito um menino.

As bolas coloridas sempre teimam em não entrar na caçapa. A luta inútil no chão verde as distraí. A mim também tem distraído por vários anos essas tacadas na beira da mesa.

- E por que você acha que vale a pena?
- Eu não acho, arrisco.
- Eu também. A diferença é que minha sorte tem seis giros.
- A vida não é um jogo, não é uma roleta russa.
- Pra mim ela sempre foi um jogo e o prêmio sempre foi a morte.
- O quê você quer dizer?

- A única diferença da minha roleta e a de Deus, é que a dele possui um tambor enorme e um número infinitamente maior de jogadores.
- Você pretende brincar de Deus?!
- Não. Eu sou Deus. Um Deus com um 38 conseguido em contrabando. Enquanto matam inocentes, eu atiro no culpado.
- Chiiiuuu!!! Você não está ouvindo?! Toda noite é assim, nesse mesmo horário, eu escuto estrondo de tiros.
- Eu não escuto nada.
- Vamos, encoste os ouvidos na parede.
- São pequenos estalos.
- Escuta, parecem galopes!
- Pararam.

Caminho feito bicho no Vale dos Suicidas. Da janela o fogo ainda queima. O cinzeiro roda em cima da mesa. A arma esquenta nas minhas mãos. Se eu fosse Deus eu não fraquejaria. Aperto o gatilho. Corvos sobrevoam o trigal. Escuto apenas um estalo seco. Acrobatas sim são loucos, eles despencam do céu, os pássaros apenas voam quando confiantes em suas asas, não passam de aviões primitivos”.

Lonas coloridas despencam sobre minha cabeça.

Aperto outra vez, desta vez mais rápido. Vejo flores sem espinhos nascendo no jardim. Abro os olhos. O rádio continua no PAUSE.
Termino um jogo da velha que comecei há muitos anos. Perdi. Há quem diga: “Azar no jogo, sorte na vida”. Pra mim não faz sentido. O que é a vida senão um jogo de cartas?
A minha são só cartas fora do baralho. Um Coringa sorri pra mim. Ou de mim?
Abro a torneira e o mar brota. Se me jogasse, me afogaria agora. E de pensar que um dia amei. Esqueci de procurar qual a probabilidade em uma roleta russa de morrer na quarta tentativa. Aperto o gatilho. Já tá virando comédia.
- Você escuta?

- São pequenos estalos.

Todo círculo é eterno e entediante. Novamente o tambor gira. Do coador escorre um fio fino e magro de café. Um cheiro de aço, sangue e pólvora corroem a carne mole da minha unha. O que esperamos muito sempre vem tarde. Ainda não foi dessa vez. Sinto meus dedos duros e calejados de tanto apalpar um amor amargo. Lembro dos carinhos do meu pai. Ainda assim respiro e aperto sem convicção o gatilho. Abro os olhos e vejo o gato dormindo. O rádio sai do PAUSE: “Mãe tire esses revólveres de mim, com eles não quero mais atirar...”. Um sangue grosso e cinza pinga feito garoa no meu último passo. A morte usa enormes sapatos pretos e lustrados. Há lama no Vale dos Suicidas. Um engraxate me oferece ajuda. Ainda vejo fogo pela janela. Os poetas não morrem, agonizam. Uma grande fumaça branca nasce da palma da minha mão... Ela dança feito uma puta feliz sob as cordas do equilibrista.
- A vida é um cavalo branco que sobe escadas.
- Cavalos não sobem escadas!
- Deve ser por isso que nunca vi sentido nessa frase. Nem na vida.
- Chiiiiiuuu! Você está escutando?! Toda noite nesse horário é assim eu escuto estrondos de tiros.
- Não são tiros. É apenas ela.
- Quem?!
- A dançarina. Ela está sapateando sob a lona.
- Então seus sapatos estão sujos do meu sangue.

(Um cheiro de plástico inunda a cidade... enquanto a lona cai.)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Um artigo do Daniel Souza

Se puderem, entre no http://www.amalgama.blog.br/, tem um artigo maravilhoso do Daniel Lopes, por motivos de força maior, o nome está como Daniel Souza.
Beijos a quem interessar.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Para René Magritte



Há dias em que não aparecem

pássaros sobre as árvores

nem lírios nas margens dos rios.

Outros dias, os rios cospem coroas para seus mortos

e os pássaros são arrancados dos ovos

e enclausurados em seus infernos.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Fracionamento


Queria ser simplesmente,

o homem de terno e chapéu,

que passa,

E deixa na esquina mais próxima

um resto de sua sombra

que não coube na mesquinhez do corpo

(um pedaço renegado de alma)




um fiapo de negritude,

preso, apodrecendo entre os dentes

- Indigesto -

jogado no estômago vazio da calçada,

causando uma estranheza

e um insignificante incômodo

nos sapatos atônitos dos pedestres.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 5



- Isso são horas?!

- Como assim? Eu sempre soube que qualquer hora é hora. Deu pra filosofar agora?

- Fique sabendo, Lúcio querido, que não estou com paciência para as suas piadinhas sem graça.

- Imagino mesmo. Afinal, ultimamente você não tem paciência pra nada, a não ser, é claro, ficar remendando seus rancores, enfiando o dedo na ferida.

- A culpa disso tudo é minha, você tem razão! Eu deveria ter ido embora há muito tempo, sou burra mesmo! Sempre arranjo desculpas pra ficar, como se beber café morno e requentado fosse melhor do que não beber nada.

- Se é você quem está dizendo, quem sou eu pra discordar?

- Eu tou cheia disso,você fica me testando o tempo todo, todas essas mulheres, essas poses, esses flashs, essas saídas fora de propósito...cada vez mais as traves me incomodam, eu tropeço em gatos o tempo todo!

- Você está exagerando, fazendo drama, aliás, tramas, é isso que você faz, distorce tudo. Você vê tudo refletido em uma água suja, turva, e as coisas acabam ganhando uma dimensão que não é real. Me lembrei do quadro do Salvador Dalí, sempre quis fotografar aquele quadro Cisnes refletindo elefantes e agora ele está aqui, diante dos meus olhos, completo e cru...indigesto.

- Você chega agora e eu sou a louca? Qual parte do filme eu perdi, porque eu não estou entendendo.

- Nenhuma parte, muito pelo contrário, você sempre acha que o diretor não foi fiel à realidade, que tem algo mais que ele não conseguiu captar através das lentes.Você arma o tripé e você mesmo cai em cima dele.

- Tá.

- Eu sei, realmente é um pouco tarde, eu sei, não discordo. Mas isso é tudo, o resto da história, a seqüência maluca de fotos não existem, você que formou, costurou com suas próprias mãos, como você forma imensas colchas de insignificantes retalhos, sei lá uma nova pintura de Gustav Klimt.

- Não, não são insignificantes retalhos, se fossem não formariam belas colchas.

- Tá bom. Podem até não serem tão insignificantes, mas você os recria, recria sua natureza. Assim como você junta pedaços de clássicos e transforma num drama enorme. Belo pra uma encenação, no entanto ridículo pra nós.

- Você não é capaz de entender, eu não consigo me controlar, às vezes, é tão óbvio que estou sendo idiota, mas sempre enxergo isso tarde demais... as traves, são elas, eu sei.

- Esquece, como alguém já disse, o essencial é invisível aos olhos. Por favor, Dejanira, pelo nosso bem, pára de tentar enxergar o que eu vejo, isso é falta de lucidez, de bom senso! Não estou te enganando, eu não tenho motivos pra isso.

- Você tem pena de mim, só porque eu sou...

- ...pára com isso, ninguém é tão bom a ponto de se autoflagelar pelo bem de outra pessoa. Abre os olhos, você consegue pressentir com facilidade, consegue sentir com as mãos todo o mundo ao seu redor. Você só não acredita no amor que tenho por você, como se eu tivesse te dado um anel de vidro, uma pedra furta-cor.

- Vou dormir, você vem?

- Alguma vez eu disse não?

- Você não ousaria, eu acabaria com você, o fotógrafo de muitas poses.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Daniel Lopes entrevista Daniel Lopes

Já está no blogue do xará de Daniel Lopes, a entrevista que ele fez com o autor de mesmo nome, abordando o lançamento do É preciso ter um caos... e vários outros assuntos relacionados à literatura. Quem quiser conferir e só clicar em: http://www.danielslopes.com/. Acessem também http://www.amalgama.blog.br/ (espero que tenham entendido)

domingo, 3 de agosto de 2008

Morte súbita



Queria descansar

numa aresta qualquer

do seu mundo,

onde sonhos e fadas são reais.


Não consigo,

cavalos brancos e selvagens

correm pelo meu corpo,

meus dedos tecem apenas

mágoa e solidão.


Queria jogar mil rosas

aos seus pés,

mas só enxergo cães mortos,

aqueles que precisei chutar

pra chegar até aqui.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 4



A noite ele chega. Ele sempre chega à noite ou ao meio-dia. É um homem de extremos, logo ele, quem diria, que vive repetindo: "nem tanto o mar, nem tanto a terra, minha querida!". Vive velejando como turista num mar verde e calmo, enquanto eu, com tantas traves atrapalhando meus olhos, estou perdida numa ilha. Solitária como uma ilha, sem nenhum naúfrago para me consolar. Muitos olhos me acompanham, seguem meus passos, riem dos meus tropeços - já não posso evitá-los. A desgraça alheia é indolor, não fede, não cheira.

Cozinho um ovo. Gosto de sentir minha mão deslizando sobre a clara macia. Lembra o rosto da minha irmã. Se o destino não a tivesse traído! Ele apunhá-la a todos pelas costas e nos seus dias de perversidade crava a faca no meio do nosso peito, olhando fundo para nossa falta de alma.

Ele vem calado, como se tivesse engolido um sapo que ainda não foi digerido. Tento ficar quieta, só Deus sabe o quanto o silêncio me custa. A qualquer hora ele pode vomitar barbaridades em cima de mim. Respiro fundo, engulo saliva e palavras. Enormes moscas azuis rondam sua boca, ele as repele sem perceber. Aquela velha continua falando feito uma maritaca. Às vezes, eu preferiria ser surda, mas quedas d'água invadem minha cabeça. Chuva e lama afogam os últimos mortos que repousam no rio verde e calmo que nasce toda tarde no meu antigo quintal.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Uma crônica da juventude



Vale a pena ler!!! Quem quiser comprar o livro entre em contato http://www.pianistaboxeador21.blogspot.com/

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 3



Desço as escadas com dificuldade de cego. Poderia ficar enclausurada com a minha paranóia, as minhas loucuras, remoendo fiapos dos meus retalhos, não consigo. Ando pelas ruas, sinto cada buraco perfurando as solas dos meus sapatos, os meus velhos passos sempre me perseguem. Aonde se enfiou aquele imbecil? Sei que nunca irei achá-lo, nem sei se quero e ainda que o achasse, ele me negaria 3 vezes, como Pedro negou a Cristo. A velha grita feito uma histérica. Não posso matá-la, nem sequer esfaqueá-la.

Entro na padaria, não olho para o balcão, não olho para os doces, não olho para os sonhos. Peço um café sem açúcar. Não gosto de café, mas sempre é a primeira coisa que peço quando entro em algum lugar. Um abismo bebido em pequenos goles. Deixo um fundo na xícara. Abismos água abaixo. Não vejo a cara da balconista, me levanto e esbarro em uma mesa. Meu impulso é sair sem pagar, me controlo. Sempre reservos notas de um real no bolso, é mais fácil, não preciso esperar o troco, nem brigar por tentativas de pequenos roubos. Nunca confie num homem atrás de uma máquina registradora.

Saio depressa, o sol bate com violência no meu rosto, quer me espofetear. Ignoro, existem coisas que consigo ignorar. Na praça a fonte espirra uma água verde e calma, é o rio que insiste em nascer no meu antigo quintal. Crianças em roda jogam moedas. Cara ou coroa? Já me esqueço do limbo escuro do Vale dos Suicidas.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 2


Um zunido penetra no meu ouvido. Milhares de enormes moscas azuis invadem minha cabeça. Minha vó rezando o terço. Meu pai me enforcando com o antigo escapulário. O corpo de Cristo apodrecendo em cima da mesa: comerás e beberás do meu Corpo... A colcha de retalhos parece abismos atravessando meus dedos. O almoço esfria na mesa. Não tenho fome. Fico imaginando o clique da sua máquina. As poses insinuantes daquelas putas oferecidas. E ainda a culpa é minha, a paranóica sou eu. Ninguém tem culpa das suas loucuras. Ninguém pode fazer nada se você é uma cega, uma topeira estúpida! Risos lunáticos escorregam pelas paredes. Aquela velha louca não pára de falar. Fala feito papagaio. Tenho vontade de descer correndo as escadas, invadir o estúdio, pegá-lo no flagra. Impossível, ele me mataria depois. Falaria sobre distúrbios, daria exemplos trágicos de romances destruídos pelo ciúmes doentio. Novamente eu sairia perdendo feito cachorro pequeno atrás de osso grande. Sairia pisando num chão molhado e escorregadio, o mesmo chão que tantas vezes enxuguei sem resultados. Ele diria que qualquer imbecil pode ver o que me recuso a enxergar - ele é sempre tão mais do que eu!!! - não se pode capturar um gato selvagem e exigir dele modos civilizados. É incoerência.



Enquanto isso em meu antigo quintal o pássaro negro compõe canções do inferno. O sol bate nos talheres, parece cegar nossas vistas, ou o resto dela. E lá fora, o rio verde e calmo afoga meus inimigos. Um limbo denso e escuro aparece sobre minhas mãos. Não tento removê-lo.



sexta-feira, 25 de julho de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 1



Quem pode adivinhar o tamanho dos meus abismos? A dor do ciúmes que eu esmago todas as noites entre meus dedos. É minha oração diária, uma queda brusca de estrelas. Caranguejos devorando defuntos na lama escura do meu rio. Últimas vítimas do vale dos suicidas. Verde e calmo ele atrai almas fracas. Viagem insólita em minhas margens. O rio que despenca no meu corpo mais parece o mar em suas piores ressacas.

Ele nunca entenderá. Ele é bom em objetos estáticos. Conhece apenas os movimentos das fotografias secando no varal. E eu aqui, estendida na beira do leito. Pensa existir um movimento perfeito para ser captado. Não acredita no acaso. Quando não gosta do que foi registrado, rasga, parte pra outra, outras. Ele acha que devo fazer o mesmo com o meu ciúmes, manuseá-lo e depois rasgá-lo, como se faz com um recibo velho. E eu, tão saudosista...

E essa velha louca não consegue calar a boca. Meu Deus! Quanta besteira! A sua voz tem uma entonação insuportável. Minha cabeça ferve como um caldeirão. Ela não percebe. Ela não consegue enxergar nada além de si mesma no meio do caminho.

Enquanto isso o carvalho submerge. O rio se cobre de um musgo verde e calmo.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

ROMANCE


AGUARDEM QUE, EM BREVE, O ROMANCE VIRÁ:

MOSAICO DE RANCORES

Here, there and everywhere


Um voyer, um viajante, peregrino e inabitável em uma cidade conhecida. Um novo gato num velho telhado. Foi assim que me senti. Cada paralelepípedo parecia ilusório e impalpável! Como se de repente as pedras criassem asas. Não me admirei das coisas novas, das novas casas, das novas janelas, das novas árvores. Me admirei pelas coisas antigas, que ainda permaneciam lá, intactas,como se nem Deus e nem o vento fosse capaz de arruiná-las. Os mesmos rostos, feridos pelas mesmas rugas. Os antigos fantasmas, agora despertados pelo toque curioso dos meus dedos. Ah! Os meus dedos! esses já não são novos, já tocaram outras histórias, desvendaram outros mistérios, já penetraram fundo em outras chagas! Algumas incuráveis , outras o tempo se encarregará de agravar.

Estou indo embora de malas cheias, mas sei que alguma coisa ficou.

Abro a porta da minha nova casa. Os meus novos fantasmas estão lá, com um sorriso branco, irônico e pouco complacente na cozinha, eles tomam café e uma antiga lembrança escapa fresca pela garrafa.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

PIANISTA BOXEADOR



Entrem no blog do pianista boxeador e leiam o conto Porque delas é o reino dos céus, eu adorei, é simplesmente fantástico!


Em breve neste blog: Romance em retalhos



Em breve farei um romance que será postado por capítulos. Por favor acompanhem.

Poema: Entre mundos e desertos



É bom rever o passado,

todas suas ruas e becos,

as escadarias, os templos profanos,

os pequenos labirintos - memória de Ariadne...

as placas de contra-mão

e até mesmo aquela encruzilhada

que não trouxe o tempo perdido de volta.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Olhos de ver


Eu acredito que o artista veja além do que lhe é mostrado, e você consegue enxergar?

Conto: You've got a friend

When you're down and troubled
And you need a helping hand
And nothing, whoa nothing is going right.
Close your eyes and think of me
And soon I will be there
To brighten up even your darkest nights.
(James Taylor)

- É preciso sacrificá-lo.

A vela queimava devagar, respeitando as tristezas que o meu avô ruminou tentando se equilibrar nas incoerências do mundo. Seus amigos faziam silêncio, cada um deles imaginando o dia de seu próprio velório. Comentam que a morte chega mais cedo para os bons. Não digo nada. Na minha mente dança o retrato do moço que nunca conheci, reparo que o bigode é o mesmo e me pergunto como um homem pode passar cinqüenta anos cultivando os mesmos sonhos. Olho para aquele rosto irreconhecível. Quando a alma sai do corpo, ele se transforma numa massa amorfa e inexpressiva, como se as lembranças fossem as únicas responsáveis pelas nossas rugas.
Se o cão do meu avô estivesse vivo, com certeza reviraria sua cova fresca, abocanharia o caixão, desabotoaria seu colarinho, tiraria seu paletó, roçaria seu peito fraco de velho e lamberia suas mãos de morto, que ainda assim guardariam antigos carinhos.

A primeira vez que a vi, ela desmanchava pequenos torrões de terra com a ponta dos dedos. Não havia beleza em seu rosto, no entanto, seu jeito telúrico me comoveu. Encostei no poste e fiquei ali, só observando, absorvendo cada pequeno gesto. O cigarro aceso e o terno de segunda me davam um aspecto de herói de filme americano. Ela jamais soube desse nosso primeiro encontro. Entrei no bar da frente, pedi um salgado e um café. Frio, o café sempre sai da garrafa antes do cliente chegar. Fingi que era bom e engoli de uma vez. Pensei no meu último cigarro de contrabando e achei que só por ser de contrabando deveria ser tragado com mais ardor.

- É preciso sacrificá-lo.

Não entendo. O seu modo de cruzar as pernas e balançar os pés não combinava com a maldade. E os seus olhos... pequenos, redondos, bons. Olhava para os pássaros em suas gaiolas de madeira e via entre eles e meu avô uma imensa semelhança. E depois as pauladas. “... a boca que beija é a mesma que escarra...”.

Meu avô era grande e guardava, numa atitude infantil, o tempo na algibeira.

- É preciso sacrificá-lo.

Todas as feridas em carne viva daquele cão voltam e chegam a arder na minha própria pele. Meu avô fechava a mão e o acariciava com os nós dos dedos, entre as duas orelhas, único lugar não devastado pela desgraça. “É preciso sacrificá-lo...”

Ela jamais suportaria essa morte branca, higienizada. Ela detestava hospitais. Tinha pavor e nojo do cheiro das flores. E o cheiro das flores sempre vem acompanhado do odor podre dos hospitais. Nunca ousei dar-lhe um ramalhete sequer. Odiava as flores. Adorava os girassóis suicidas de Van Gogh.
As visitas entediavam-na, aos poucos, as pessoas deixaram de aparecer. Ou para deixar de incomodá-la ou por puro comodismo. As raras palavras que pronunciava eram:
- Está um cheiro insuportável aqui, deve vir do corredor. A comida é tão ruim que não sei dizer se o cheiro vem do refeitório ou do banheiro.
- Não sinto nada. – eu mentia.
Ela sabia que aquele cheiro forte vinha do seu próprio corpo, sempre na mesma posição. Os banhos eram feitos com um pano úmido. Cada dia mais magra... talvez o monstro que tanto temíamos quando criança, saísse debaixo da sua cama e devorasse toda noite um pedaço da sua carne tenra e amarga.
Suas costas estavam cobertas de feridas, como se o seu corpo tivesse a intenção de escancarar suas mágoas. Um campo de papoulas prontas para serem colhidas.

“- É preciso sacrificá-lo. – decretou o veterinário.” Já não conseguia enxergar tanta perversidade nessa frase.

O relógio do hospital marca 11 horas. Lembro do meu avô e agora apalpo, como se apalpa uma fruta madura, todo o seu medo. Eu também poderia guardar o tempo no bolso – injeto o líquido em seu braço branco.
Hoje sei que meu avô era deveras bom e se o seu cachorro estivesse vivo abriria seu túmulo e colocaria uma flor em sua lapela.
Poderia num acesso de fúria, arrancar os ponteiros do relógio, mas agora é tarde demais e todas as horas são mortas.