
- Isso são horas?!
- Como assim? Eu sempre soube que qualquer hora é hora. Deu pra filosofar agora?
- Fique sabendo, Lúcio querido, que não estou com paciência para as suas piadinhas sem graça.
- Imagino mesmo. Afinal, ultimamente você não tem paciência pra nada, a não ser, é claro, ficar remendando seus rancores, enfiando o dedo na ferida.
- A culpa disso tudo é minha, você tem razão! Eu deveria ter ido embora há muito tempo, sou burra mesmo! Sempre arranjo desculpas pra ficar, como se beber café morno e requentado fosse melhor do que não beber nada.
- Se é você quem está dizendo, quem sou eu pra discordar?
- Eu tou cheia disso,você fica me testando o tempo todo, todas essas mulheres, essas poses, esses flashs, essas saídas fora de propósito...cada vez mais as traves me incomodam, eu tropeço em gatos o tempo todo!
- Você está exagerando, fazendo drama, aliás, tramas, é isso que você faz, distorce tudo. Você vê tudo refletido em uma água suja, turva, e as coisas acabam ganhando uma dimensão que não é real. Me lembrei do quadro do Salvador Dalí, sempre quis fotografar aquele quadro Cisnes refletindo elefantes e agora ele está aqui, diante dos meus olhos, completo e cru...indigesto.
- Você chega agora e eu sou a louca? Qual parte do filme eu perdi, porque eu não estou entendendo.
- Nenhuma parte, muito pelo contrário, você sempre acha que o diretor não foi fiel à realidade, que tem algo mais que ele não conseguiu captar através das lentes.Você arma o tripé e você mesmo cai em cima dele.
- Tá.
- Eu sei, realmente é um pouco tarde, eu sei, não discordo. Mas isso é tudo, o resto da história, a seqüência maluca de fotos não existem, você que formou, costurou com suas próprias mãos, como você forma imensas colchas de insignificantes retalhos, sei lá uma nova pintura de Gustav Klimt.
- Não, não são insignificantes retalhos, se fossem não formariam belas colchas.
- Tá bom. Podem até não serem tão insignificantes, mas você os recria, recria sua natureza. Assim como você junta pedaços de clássicos e transforma num drama enorme. Belo pra uma encenação, no entanto ridículo pra nós.
- Você não é capaz de entender, eu não consigo me controlar, às vezes, é tão óbvio que estou sendo idiota, mas sempre enxergo isso tarde demais... as traves, são elas, eu sei.
- Esquece, como alguém já disse, o essencial é invisível aos olhos. Por favor, Dejanira, pelo nosso bem, pára de tentar enxergar o que eu vejo, isso é falta de lucidez, de bom senso! Não estou te enganando, eu não tenho motivos pra isso.
- Você tem pena de mim, só porque eu sou...
- ...pára com isso, ninguém é tão bom a ponto de se autoflagelar pelo bem de outra pessoa. Abre os olhos, você consegue pressentir com facilidade, consegue sentir com as mãos todo o mundo ao seu redor. Você só não acredita no amor que tenho por você, como se eu tivesse te dado um anel de vidro, uma pedra furta-cor.
- Vou dormir, você vem?
- Alguma vez eu disse não?
- Você não ousaria, eu acabaria com você, o fotógrafo de muitas poses.