sexta-feira, 27 de março de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 33

Mais um dia se arrastando entre os retalhos furta-cores da nossa incompreensão. Queria tanto conseguir sorrir com a verdade estampada roxa nos dentes. No entanto, sou alegre apenas entre frestas, palitos e solidões. Meu ventre dói como filmes tristes. Vasculho e arranco fetos. Ninguém merece vingar pra vida. Cobras pendurando as antigas peles em nossos antigos cabides. Inspiro demoradamente e centenas de pregos enferrujados entram e atravancam minhas narinas. Respirar está cada vez mais caro. Parece que nossos mares desembocam em esgotos. Baratas e ratos e traças abrindo trilhas nos lençóis. Roendo as migalhas da nossa tão sonhada felicidade. Gafanhotos devorando homens, a ira abençoada de Deus. A penúltima chuva levou crianças e umedeceu os muros e eles ainda não secaram, rastros de lesmas nos quintais. Queria entender ou mudar os passos desde nosso primeiro encontro. Os sapatos eram novos e incrivelmente confortáveis, agora estão velhos e criam calos, joanetes, olhos de peixe. Ando tropeçando na imagem suja e imperfeita que fez de mim. Eu me enxergo com seus olhos e não gosto do que vejo. Mendigos acariciando cães. Sóis e trovões anoitecem em minhas mãos, enquanto rios atravessam os nós dos meus dedos. Amanheço e manejo a insônia indolente dos dias.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 32

Não vale a pena encarar guerras para abrir valas e depositar amores mortos. Canhões e tanques estão apontados para mim e eu espero. A grande virtude dos fracos. Os urubus planam felizes sobre suas carniças. Pousam e devoram olhos vazados de dor. Oroboro, o ciclo inútil da vida. Minha boca já sugou picadas de cobras e o veneno ainda abre feridas incuráveis na minha pele. Lepra. Amores arrancam partes e nos aleijam. Tromboses e cadeiras de rodas. Você me possui, escancara meus abismos e tira o resto de luz que me resta. Você jamais foi capaz de percorrer meus porões sem se perder nos meus escombros, sempre trazendo escondidas nas mãos pérolas negras e roubadas. Escafandros afogados no lodo. Anjos debruçados na lama. Cordas enlaçadas com arte envoltas no pescoço. A lâmina afiada do seu mundo me assusta mais do que guilhotinas cegas. Não há como furtar sem deixar impressões digitais ou partes dos dedos. Não quero mais ser A Suplicante de Claudel. É triste dançar uma valsa só ao som de um réquiem. Amá-lo é mergulhar com os bolsos cheios de pedras num rio verde e calmo, onde descansam libélulas e fantasmas de Virginia Wolf.

terça-feira, 3 de março de 2009

Desfaço pedras e sonho com as mãos. Seu sexo me excita e me acalma, no entanto, não retira os musgos dos muros que crescem dentro de mim. Cercas elétricas. Carcereiros do que nos restou. Fígados de Prometeu. Bombas de efeito pouco moral. Não há como se proteger dos ladrões que enganam os estômagos vazios das noites. Dragões que escalam escadas e torres e devoram princesas. Você me propôs a paz que jamais te habitará. O Natal passou e nossas meias continuam sujas, murchas e penduradas naquele velho arame farpado. Os espinhos nunca me assustaram e os meus pés são duros, calejados. Penso em nosso amor fraco e hemorrágico. Eutanásias e balões de oxigênio. Procuro antigas cartas, é comum se contentar com alegrias enterradas. Te odeio e isso não me faz forte. Minha carne fresca e esfolada sangra dores passadas, hoje entendo porque as crianças tiram as cascas do machucado, é pra ver o que sobrou da queda. Viajo em ruas de paralelepípedos. Sou alvo e disparo. Tiros para cima atingem minha cabeça. Coágulos sujam sua roupa e eu me pergunto: Pode existir um homem sem sombra? Junto retalhos numa compulsão louca por recriar a vida em coisas mortas. Do jarro de flores escorre um rio verde e denso, vejo homens vindo à tona respirar. Amores não morrem, são sacrificados.