sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 10

As facas estão a um centímetro da minha jugular. Não tenho medo, há muito tempo o sangue escapa do meu corpo. Olhos de peixe. Finjo dormir enquanto minhas pálpebras permanecem bem abertas. Por anos carreguei toras de madeira nas costas, pecado, crucifixo. Agora não posso evitar essa fogueira interminável, alastrando árvores, carregando carros, derrubando casas, afogando gente. Será que as coisas ressurgem mesmo das cinzas? Tenho minhas dúvidas, já provoquei muitos incêndios, mas não tenho visto nada de bonito nascer deles.Vênus abordadas. O sol bate na minha janela, aquece as cortinas, os retalhos, os restos de mim... Posso escutar o Lúcio: “Você não está vendo o sol que está lá fora?! Feche essas cortinas!” . Não, não vejo, embora o alumínio queime as pontas dos meus dedos. Não adianta, eu nunca me lembro, e é sempre a mesma fumaça que engulo. E ele nunca se preocupou, a fumaça está me asfixiando e ele nem percebe. A voz da minha irmã ecoa no velho quarto: “Deja me ajuda, me ajuda, não consigo respirar”. E daí? Não foi a asma que a matou, foi o ódio saído daquele maldito revólver. “O ciúmes é tocha em boca de alcoólatra”. E Happiness is warm gun. O que posso fazer? Me fingir de idiota como a maioria? Fingir que sou cega? Fingir que o seu sexo povoando mundos não agride o meu amor? Espadas perfuram meu útero e nem por isso gozo. Lâminas me cortam e nem por isso sangro. Eles podem gritar, eu não estou errada. Eu sei que muitas vezes abismos enganam meus pés e a fumaça que entra por aquela janela atrapalha e faz arder os meus olhos. Olhos de peixe. Mas ainda assim eu consigo caminhar com meus próprios pés. O rio verde e calmo ainda despenca no meu quintal. Vejo cardumes boiando. Milhares de olhos me observam e eu tropeço invisível sobre as pedras.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 9

“O ciúmes mata como guilhotina”. Recolho como louca os retalhos da colcha que estou terminando. Todas as cores num só pedaço de tecido. Elenir sempre diz não entender como sou capaz de colocar todas essas cores em tão perfeita harmonia! Nem eu, às vezes, imagino que são infinitos tons de cinzas e quando vejo, está pronto. Isso me comove.
Desço as escadas devagar. Último andar. A rua parece um campo de batalha. Guernica. Escuto tiros, mas não procuro ver de que lado estão os canhões, nem de onde vem o cheiro de pólvora. O diabo passa e pouco importa em que porta ficou preso o seu rabo. As buzinas me enlouquecem, sons de metal, ensaios de banda de rock, ratos e baratas caminhando falsos pelos bueiros. As pessoas passam rápido, esbarram no meu desespero. Elas não percebem, usam as mãos para estancar as feridas que devoram seus ventres. Fogueiras se formam debaixo dos meus pés. O sol chega às vistas dos mais sensíveis. Lúcio está longe. Ele não se importa comigo, vive rodeado pelas fotos daquelas vadias. Poderia enforcá-lo com aquele varal, ele sentiria o próprio veneno, saberia o gosto que devassa minha língua. Faria com que ele engolisse todos aqueles peitos e pernas e braços e bocas, o seu mosaico erótico. Imbecil. Pensa que sou idiota, que não percebo suas estratégias de fuga. Poderia voltar correndo, entrar naquele estúdio e picar todas aquelas fotos indecentes. Não adiantaria nada. Ele tiraria outras fotos, passaria mais tempo com aquelas piranhas e depois se trancaria naquele quarto escuro até que cada curva daquelas mulheres se tornassem nítidas e palpáveis.
Um rio verde e calmo invade meu quarto, é incrível, ele abriga pequenas ilhas... da janela, a mesma fogueira se extinguindo, aquela que antes devorava meus pés e meus sapatos.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Conto: Alvo



A
L . V
O

Observava sua boca fina e estéril. Quem a olhava jamais poderia imaginar quantas palvras formigavam ali. Batom e biles se misturavam num gosto amargo e solitário. Sua boca sugando o cigarro, ou seria o cigarro sugando sua boca? Descia a escada helicoidal mexendo duramente o quadril magro.

Se não fosse tão bonita seria insuportável! Gritava feito uma louca: "Você é surdo, mas que droga!". Nessas ocasiões eu via a úvula da minha mãe balançar, uma gelatina indigesta. Essa é a imagem que me prende a ela: uma histérica de coque na cabeça, no lugar da face um enorme rasgo amarelo de nicotina e dentes negros de infelicidade. Fui parido um pouco por essa cor abismal.

O saxofone pendurado na parede. Conchas do mar na escrivaninha. Ela adorava escutar conchas do mar. Eu adorava ver meu saxofone ali; onipotente, expressivo, intimidador. Nunca aprendia a tocar. Mas ele, ali, pendurado, me fazia forte. Eustáquio. Odeio esse nome. Por que não me chamo Rodrigo Paulo Marcio João José????????? Marcela eu gosto, se ela fosse mais doce....

Esse vizinho imbecil martelando, martelando, martelando... toda hora, todo dia, me lembram as infernais badaladas do relógio da casa velha da minha vó.
Quando estou fodido e triste, gosto de sentir sob meus dedos as reentrâncias do vinil, as agulhas arranhando a roda negra: "Folha Morta" de Ary Barroso.

Ela me odeia, ela repugna meus olhos burros de incompreensão. Uma espécie de punição, autoflagelo. Ela é minha pérfida Ariadne, ela me dá o novelo para atravessar o labirinto e quando estou perto da saída, ela o puxa, pelo simples prazer de me ver perdido entre centenas de maçanetas e nenhuma mão. Milhões de vozes mudas ecoam nos meus ouvidos. PAVilhões cheios de gente... Marcela rindo da minha desgraça. A boca amarela-preta da minha mãe...

Poderia dar um tiro em meu ouvido, mas nasci surdo e me recuso a não escutar o estrondo da minha morte. No vinil gira um réquiem do Debussy. O sax toma toda a dimensão da sala.
Do labirinto

escorrem

metros

e

metros

de um novelo

macio e vermelho.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 8

Jorrava preto como água de lama o café da minha mãe. Adorava aquela fumaça, no entanto, agora ela parecia um misto de enxofre e pólvora desprendido do revólver que matara minha irmã. Cinza como o resto dos olhos dela na xícara, inerte e gelada como seu corpo. Minhas mãos tremiam, estavam perto de uma convulsão: "O ciúmes corrói, é ácido, é pico de heroína nas veias de um cardíaco". Minha trristeza não entendia aquelas palavras, talvez nunca fosse capaz de digeri-las. Vomitava. O café quente explodia na minha garganta seca. Queria correr, correr, correr, cavalgar entre trilhos sem cavalos, eles atrapalhariam. A única imagem que me vinha na cabeça eram os caranguejos, os manguezais. O vestido preto e vermelho era peça de um mosaico mórbido. O sangue emprestava vida aos lírios das margens. Vomitava. Um líquido negro e morno escorria pelos cantos ignorantes da minha boca. Já não podia respirar, fora minha primeira crise de asma. Belinha jamais teria crises de asma, seu corpo esfriava em cima da terra que borbulhava. Queria correr, queria falar com minha vó, queria pedir ajuda a Santa Luzia, queria apertar entre meus dedos de parkinson o velho escapulário, queria arrebentar terços. Queria meter uma faca no coração doente do meu pai, ele só sabia repetir: "O ciúmes mata, é faca sem gume". Era em meu peito que a faca entrava. Era dentro dele que ardia, velórios de meninos. Não podia voltar no tempo, não podia parar com o meu rosto aquela bala. Se pudesse, talvez também não parasse. A morte dói, mas a vida são agulhas torturando as pontas dos dedos. Com os anos, os olhos tão lindos de Belinha, tão azuis, se tornariam gastos e opacos como os meus. Parados, olhos de peixe em vigília. Queria correr correr correr e rasgar minhas roupas, mergulhar no rio sempre calmo e verde, que insiste em se esquecer no meu quintal. Um rio sem taboas e sem lírios... Vejo apenas o brilho das grandes moscas azuis e isso já é o começo de um alento.

sábado, 16 de agosto de 2008

Sem título

Não faça que eu me iluda querido.
Eu posso dormir e acordar,
mas quando olho pela janela
o cemitério ainda abre novas covas
para seus velhos mortos.

No jardim brotam flores,
embora amarelas,
elas exibem suas carnes,
feito as putas que habitam
as esquinas de nossa casa.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 7

A minha irmã era o único ser do mundo que me entendia, não que ela soubesse desse fato. Aliás, ela ainda não sabia de nada quando aquela bala atravessou sua cabeça e lhe deu uma grande rasteira. Não sei se algum dia acharei isso ruim. Não acredito que a vida tivesse sido muito gentil com ela. A morte é mais excitante, são cavalos vermelhos e selvagens. Se pudesse escolher, eu escolheria a morte, para poupar a pobre da Belinha. Meu pai cuspia pelas frestas feias dos seus dentes: "O ciúmes é faca de corte lento, primeiro estraçalha a carne, depois vomita o sangue."

Belinha tinha o sangue fraco, não pude olhar, mas desconfio não ter escorrido nenhum líquido de sua cabeça. E de pensar que seus olhos eram tão azuis! Só me recordo que eles começaram se tornar tão cinza quanto o chumbo que, por engano de Deus ou do Diabo, se alojou feito pensamento em seu cérebro. Imagino quantos gritos foram estrangulados naquele instante. A fumaça preta do café se misturava ao cheiro amargo da pólvora. As lágrimas não se formaram nos meus olhos. "O ciúmes mata feito trem descarrilhado!". Eu não compreendia aquelas palavras, nem me importava com elas, não compreendia o enxofre misturado com toda aquela poeira. Talvez tenha sido a primeira vez que ouvi o zunido das primeiras moscas azuis.

Escuto ao longe o barulho do rio verde e calmo ou talvez, seja apenas o líquido da sua cabeça, que depois de anos resolvera jorrar.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 6

Traves sempre atrapalharam meus olhos. Escuto a voz do meu pai pregando:"O ciúmes mata como erva daninha". Nunca quis dar razão a ele, no entanto, como posso discordar sentindo ramos e folhas me sufocando? Sou contra toda sua doutrina religiosa e fanática, porém, não tenho como negar que a vida lhe ensinara algumas verdades. Assim como está ensinando a mim. São brasas fervendo perfurando minhas pupilas já cegas. Não posso esquecer o rosto angelical da minha irmã, nem tudo que lhe aconteceu depois. Nem mil anos me faria esquecer. Era singular o seu jeito de se agarrar a mim, parecia que jamais me soltaria e não soltou: "Vamo Janira, vamo brincar! Você já viu meu cavalinho? É mais bonito que um de verdade!". Nesse tempo, minhas vassouras falavam com tanta facilidade! Não resistia, às vezes, quase morria de ódio, não queria brincar feito uma criança bobona, mas tinha dó do mundo perfeito e perdido no meu quintal. E aqueles olhos tão azuis, tão meigos... Nada tinham a ver com os meus, tão negros, tão opacos, tão cansados, olhos de viagem. Meu pai gritando: "o ciúmes mata feito picada de cobra venenosa". Naquele tempo as palavras eram vazias e só diziam o que ecoavam. Eu sentia o peso da mão do meu pai. Quando olhava pra fora, eu pensava que aquele rio, tão verde e calmo eram as lágrimas que não podia soltar. Eu pensava, apenas eu sou responsável por todo esse limbo. Quem pode saber? Corpos de crianças mortas adormecem nas margens, entre pedras e lírios.

sábado, 9 de agosto de 2008

Conto: Roleta Russa


“When i was just baby/my mother told me
son alway be a good boy/and never play with guns"
(Johnny Cash)
Galopes atravessam a sala.
- Chiiiiuuu!!! Você tá ouvindo?! Toda noite é assim, nesse mesmo horário, eu escuto barulho de tiros.
- Eu não escuto nada.
- Vamos, encoste os ouvidos na parede.

- São pequenos estalos.
O fogo invade a minha janela. Uma grande fogueira domina o céu. Um cheiro de plástico inunda a cidade.
A única mulher que amei me abandonou. Disse que seria dançarina de Circo, pra mim se tornou uma prostituta. Uma puta dançando sob a lona. Vai-se o amor, fica o ódio. Ainda sinto as pancadas de seu martelo massacrando a carne de segunda. Nessas horas, ela comentava: “Olha ali, de novo aquele caminhão em frente ao mercado”. “Ele está recolhendo o resto das carnes, as migalhas de sua carnificina. Os ossos indigestos que não pode roer”. Ela contestava como um velho sábio: “Comeu a carne agora roí o osso!”. Segui seu conselho: estou roendo os ossos, mas quem comeu a carne foi ela. O resultado são dentes cariados, dois molares cheios de amálgama e estorninhos voando sobre meu estrume. As aves não se cansam de zombar da nossa falta de asas e de sorte.

Muitos tentam me convencer do milagre da vida. Poucos têm convencidos a si mesmos. Messias se deixou pregar na cruz. Tenho encontrado muitos cadáveres atravessando com pés alheios o mar vermelho. A fé não os faz boiar, eles simplesmente afundam. Formigas remexem em seus restos. Caranguejos os devoram. E eu que era homem, durmo feito um menino.

As bolas coloridas sempre teimam em não entrar na caçapa. A luta inútil no chão verde as distraí. A mim também tem distraído por vários anos essas tacadas na beira da mesa.

- E por que você acha que vale a pena?
- Eu não acho, arrisco.
- Eu também. A diferença é que minha sorte tem seis giros.
- A vida não é um jogo, não é uma roleta russa.
- Pra mim ela sempre foi um jogo e o prêmio sempre foi a morte.
- O quê você quer dizer?

- A única diferença da minha roleta e a de Deus, é que a dele possui um tambor enorme e um número infinitamente maior de jogadores.
- Você pretende brincar de Deus?!
- Não. Eu sou Deus. Um Deus com um 38 conseguido em contrabando. Enquanto matam inocentes, eu atiro no culpado.
- Chiiiuuu!!! Você não está ouvindo?! Toda noite é assim, nesse mesmo horário, eu escuto estrondo de tiros.
- Eu não escuto nada.
- Vamos, encoste os ouvidos na parede.
- São pequenos estalos.
- Escuta, parecem galopes!
- Pararam.

Caminho feito bicho no Vale dos Suicidas. Da janela o fogo ainda queima. O cinzeiro roda em cima da mesa. A arma esquenta nas minhas mãos. Se eu fosse Deus eu não fraquejaria. Aperto o gatilho. Corvos sobrevoam o trigal. Escuto apenas um estalo seco. Acrobatas sim são loucos, eles despencam do céu, os pássaros apenas voam quando confiantes em suas asas, não passam de aviões primitivos”.

Lonas coloridas despencam sobre minha cabeça.

Aperto outra vez, desta vez mais rápido. Vejo flores sem espinhos nascendo no jardim. Abro os olhos. O rádio continua no PAUSE.
Termino um jogo da velha que comecei há muitos anos. Perdi. Há quem diga: “Azar no jogo, sorte na vida”. Pra mim não faz sentido. O que é a vida senão um jogo de cartas?
A minha são só cartas fora do baralho. Um Coringa sorri pra mim. Ou de mim?
Abro a torneira e o mar brota. Se me jogasse, me afogaria agora. E de pensar que um dia amei. Esqueci de procurar qual a probabilidade em uma roleta russa de morrer na quarta tentativa. Aperto o gatilho. Já tá virando comédia.
- Você escuta?

- São pequenos estalos.

Todo círculo é eterno e entediante. Novamente o tambor gira. Do coador escorre um fio fino e magro de café. Um cheiro de aço, sangue e pólvora corroem a carne mole da minha unha. O que esperamos muito sempre vem tarde. Ainda não foi dessa vez. Sinto meus dedos duros e calejados de tanto apalpar um amor amargo. Lembro dos carinhos do meu pai. Ainda assim respiro e aperto sem convicção o gatilho. Abro os olhos e vejo o gato dormindo. O rádio sai do PAUSE: “Mãe tire esses revólveres de mim, com eles não quero mais atirar...”. Um sangue grosso e cinza pinga feito garoa no meu último passo. A morte usa enormes sapatos pretos e lustrados. Há lama no Vale dos Suicidas. Um engraxate me oferece ajuda. Ainda vejo fogo pela janela. Os poetas não morrem, agonizam. Uma grande fumaça branca nasce da palma da minha mão... Ela dança feito uma puta feliz sob as cordas do equilibrista.
- A vida é um cavalo branco que sobe escadas.
- Cavalos não sobem escadas!
- Deve ser por isso que nunca vi sentido nessa frase. Nem na vida.
- Chiiiiiuuu! Você está escutando?! Toda noite nesse horário é assim eu escuto estrondos de tiros.
- Não são tiros. É apenas ela.
- Quem?!
- A dançarina. Ela está sapateando sob a lona.
- Então seus sapatos estão sujos do meu sangue.

(Um cheiro de plástico inunda a cidade... enquanto a lona cai.)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Um artigo do Daniel Souza

Se puderem, entre no http://www.amalgama.blog.br/, tem um artigo maravilhoso do Daniel Lopes, por motivos de força maior, o nome está como Daniel Souza.
Beijos a quem interessar.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Para René Magritte



Há dias em que não aparecem

pássaros sobre as árvores

nem lírios nas margens dos rios.

Outros dias, os rios cospem coroas para seus mortos

e os pássaros são arrancados dos ovos

e enclausurados em seus infernos.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Fracionamento


Queria ser simplesmente,

o homem de terno e chapéu,

que passa,

E deixa na esquina mais próxima

um resto de sua sombra

que não coube na mesquinhez do corpo

(um pedaço renegado de alma)




um fiapo de negritude,

preso, apodrecendo entre os dentes

- Indigesto -

jogado no estômago vazio da calçada,

causando uma estranheza

e um insignificante incômodo

nos sapatos atônitos dos pedestres.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 5



- Isso são horas?!

- Como assim? Eu sempre soube que qualquer hora é hora. Deu pra filosofar agora?

- Fique sabendo, Lúcio querido, que não estou com paciência para as suas piadinhas sem graça.

- Imagino mesmo. Afinal, ultimamente você não tem paciência pra nada, a não ser, é claro, ficar remendando seus rancores, enfiando o dedo na ferida.

- A culpa disso tudo é minha, você tem razão! Eu deveria ter ido embora há muito tempo, sou burra mesmo! Sempre arranjo desculpas pra ficar, como se beber café morno e requentado fosse melhor do que não beber nada.

- Se é você quem está dizendo, quem sou eu pra discordar?

- Eu tou cheia disso,você fica me testando o tempo todo, todas essas mulheres, essas poses, esses flashs, essas saídas fora de propósito...cada vez mais as traves me incomodam, eu tropeço em gatos o tempo todo!

- Você está exagerando, fazendo drama, aliás, tramas, é isso que você faz, distorce tudo. Você vê tudo refletido em uma água suja, turva, e as coisas acabam ganhando uma dimensão que não é real. Me lembrei do quadro do Salvador Dalí, sempre quis fotografar aquele quadro Cisnes refletindo elefantes e agora ele está aqui, diante dos meus olhos, completo e cru...indigesto.

- Você chega agora e eu sou a louca? Qual parte do filme eu perdi, porque eu não estou entendendo.

- Nenhuma parte, muito pelo contrário, você sempre acha que o diretor não foi fiel à realidade, que tem algo mais que ele não conseguiu captar através das lentes.Você arma o tripé e você mesmo cai em cima dele.

- Tá.

- Eu sei, realmente é um pouco tarde, eu sei, não discordo. Mas isso é tudo, o resto da história, a seqüência maluca de fotos não existem, você que formou, costurou com suas próprias mãos, como você forma imensas colchas de insignificantes retalhos, sei lá uma nova pintura de Gustav Klimt.

- Não, não são insignificantes retalhos, se fossem não formariam belas colchas.

- Tá bom. Podem até não serem tão insignificantes, mas você os recria, recria sua natureza. Assim como você junta pedaços de clássicos e transforma num drama enorme. Belo pra uma encenação, no entanto ridículo pra nós.

- Você não é capaz de entender, eu não consigo me controlar, às vezes, é tão óbvio que estou sendo idiota, mas sempre enxergo isso tarde demais... as traves, são elas, eu sei.

- Esquece, como alguém já disse, o essencial é invisível aos olhos. Por favor, Dejanira, pelo nosso bem, pára de tentar enxergar o que eu vejo, isso é falta de lucidez, de bom senso! Não estou te enganando, eu não tenho motivos pra isso.

- Você tem pena de mim, só porque eu sou...

- ...pára com isso, ninguém é tão bom a ponto de se autoflagelar pelo bem de outra pessoa. Abre os olhos, você consegue pressentir com facilidade, consegue sentir com as mãos todo o mundo ao seu redor. Você só não acredita no amor que tenho por você, como se eu tivesse te dado um anel de vidro, uma pedra furta-cor.

- Vou dormir, você vem?

- Alguma vez eu disse não?

- Você não ousaria, eu acabaria com você, o fotógrafo de muitas poses.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Daniel Lopes entrevista Daniel Lopes

Já está no blogue do xará de Daniel Lopes, a entrevista que ele fez com o autor de mesmo nome, abordando o lançamento do É preciso ter um caos... e vários outros assuntos relacionados à literatura. Quem quiser conferir e só clicar em: http://www.danielslopes.com/. Acessem também http://www.amalgama.blog.br/ (espero que tenham entendido)

domingo, 3 de agosto de 2008

Morte súbita



Queria descansar

numa aresta qualquer

do seu mundo,

onde sonhos e fadas são reais.


Não consigo,

cavalos brancos e selvagens

correm pelo meu corpo,

meus dedos tecem apenas

mágoa e solidão.


Queria jogar mil rosas

aos seus pés,

mas só enxergo cães mortos,

aqueles que precisei chutar

pra chegar até aqui.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 4



A noite ele chega. Ele sempre chega à noite ou ao meio-dia. É um homem de extremos, logo ele, quem diria, que vive repetindo: "nem tanto o mar, nem tanto a terra, minha querida!". Vive velejando como turista num mar verde e calmo, enquanto eu, com tantas traves atrapalhando meus olhos, estou perdida numa ilha. Solitária como uma ilha, sem nenhum naúfrago para me consolar. Muitos olhos me acompanham, seguem meus passos, riem dos meus tropeços - já não posso evitá-los. A desgraça alheia é indolor, não fede, não cheira.

Cozinho um ovo. Gosto de sentir minha mão deslizando sobre a clara macia. Lembra o rosto da minha irmã. Se o destino não a tivesse traído! Ele apunhá-la a todos pelas costas e nos seus dias de perversidade crava a faca no meio do nosso peito, olhando fundo para nossa falta de alma.

Ele vem calado, como se tivesse engolido um sapo que ainda não foi digerido. Tento ficar quieta, só Deus sabe o quanto o silêncio me custa. A qualquer hora ele pode vomitar barbaridades em cima de mim. Respiro fundo, engulo saliva e palavras. Enormes moscas azuis rondam sua boca, ele as repele sem perceber. Aquela velha continua falando feito uma maritaca. Às vezes, eu preferiria ser surda, mas quedas d'água invadem minha cabeça. Chuva e lama afogam os últimos mortos que repousam no rio verde e calmo que nasce toda tarde no meu antigo quintal.