terça-feira, 26 de maio de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 36

A chuva chega e traz um cheiro forte de terra, mágoa e receio. Paro o meu destino, sinto as rodas e engrenagens enferrujadas do meu corpo. Não posso simplesmente fingir que os pingos não existem e não me incomodam. Eles doem como mordidas de loucos raivosos em minha carne, me perseguem feito cães sarnentos e famintos e aumentam minha fome nunca saciada. Agora Lúcio está lá, flagrando os momentos, na sua inércia idiota de sempre. Carrego Ele dentro de mim e ele pesa míseros 200 quilos. Ele vive na sua belle époque. O ciúme perfura minhas tripas, invade minhas veias. São agulhas quentes de sangue e insulina. Calvários, enterros e missas de sentimentos vivos. A maioria das coisas é enterrada viva, posso ver as unhas agredindo o caixão e perfurando os ossos. Calcificações. Não existem dias ou noites para os enfermos, a vida se perde na atemporalidade, se esvai nos intervalos das insignificâncias. Presto atenção na ausência de cor dos rejuntes. Posso sentir, mas não posso ver o tamanho das dentadas.

domingo, 10 de maio de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 35

Saio e o asfalto engole o resto de vida dos meus sapatos. Eles enxergam o que jamais serei capaz de sonhar em ver. Eles pisam em cima daquilo que penso entender. Choro, pois não posso esconder minha cegueira atrás de óculos escuros. Sons metálicos me invadem e domam meus ouvidos. É o bater de asas das grandes e covardes moscas azuis. Meus dedos sangram e me condenam. Lâminas e crucifixos. Não há crimes perfeitos, todos sabem disso, mas eu sempre ignorei as grandes verdades, elas me pareciam com os rótulos enganosos e com as fórmulas fáceis. Eu levanto com dificuldade e caio em minha própria merda. Tento me consolar lembrando do cheiro do café da minha mãe preenchendo tudo, mas logo vem os zunidos, o enxofre, os olhos doces e mortos de Belinha... Meu passado todo em desalinho. Meu corpo costurado, vermelho e cremado. Colcha de retalhos. O vento bate e leva tudo, até o pior de nós, que antes parecia tão inútil e dispensável. Tateio meu corpo e finjo orgasmos. Clitóris e lábios não são suficientes. Gemidos me calcificam. Pedras em coma submergem. Faço dos meus lençóis o leito frágil do meu rio. Não há graça nem louvor nos meus suicídios diários.