“Onde é o vasto ventre do nada, prenhe de mundos, que contém agora as raças que virão?”
Arthur Schopenhauer
Enquanto a despia com a alma de viajante, pensava em “Cão Danado”. Se o revólver não tivesse sido roubado. Se ela não tivesse casado com aquele homem rude, se não tivesse parido por tantos anos, tantos filhos brutos rasgando suas entranhas de falsa mulher civilizada... Soluçava e sentia o gosto das goiabas que compartilhávamos quando crianças e com o tempo foi bichando. O esfíncter arrombado da nossa infância prematura.
- Você está diferente, parece que a rudeza te comeu por dentro e por fora, de pensar que já fomos tão parecidas, as pessoas até costumavam confundir.
- Você julga não ter mudado.
- E mudei?
- Minha querida! Não seja tão tonta, eu não envelheci assim, tão de repente, tão sozinha, já faz tantos anos...
- Tantos anos?! Não foram tantos assim.
- Eu apenas parei com essa luta insana contra o tempo. Agora eu comungo com ele, todas as manhãs.
- Uma forma bem cômoda de encarar essa flacidez mórbida estampada em você, toda essa pele manchada de mágoa tropeçando entre seus dedos.
- É triste ver você.
- Que ironia! Digo o mesmo.
- Eu te amo, não há nenhuma ironia em minha voz, não desperdice suas forças comigo, estou ao seu lado, como quando pela manhã nos surpreendíamos porque tínhamos sonhado o mesmo sonho.
- Já não me lembrava.
- Você ainda não percebeu que mudou. Um vestido que nunca foi usado, não significa que não envelheceu.