domingo, 18 de novembro de 2012

Cariátide




Continuo costurando, estou me tornando boa em disfarçar os pontos sob a pele branca. Embora a queloide se estenda por um dos meus braços e eles apenas dizem que sou geneticamente predisposta  a criar dobras sobre a pele. 
Depois da queda, passei duas madrugadas fazendo o enchimento, estofa velha cheirando a mijo de gato, era necessário disfarçar o oco que me esvaziava, que comia minha carne, que desgastava minhas cartilagens. Era preciso parecer que os órgãos ainda estavam lá, que as vértebras ainda eram móveis, era preciso fingir que os ratos ainda copulavam nos esgotos gerando homens-simulacros, era preciso fingir que eu era uma dessas crias, fingir que eu teria orgasmos quando meu clitóris fosse tocado por uma língua, e quantas vezes precisei mentir que havia um clitóris sobre minha vulva. Era preciso ser uma boneca cheia, dessas com glândulas sudoríparas, dessas que têm pálpebras, que abrem e fecham os olhos e não causam estranhamentos, dessas que quando morrem são carregadas por formigas famintas, dessas que fedem como cavalos, que fodem como cadelas, era preciso ser um desses corpos que explodem ovos de baratas.
Entretanto, é preciso dizer que eu era mulher, feia mas mulher, que a minha vagina me enjoava e que tive mais poluções noturnas que orgasmos e todas as minhas fendas causavam mais pavor do que prazer. Torno mecânico.

imagem: Roberta Agostini

sábado, 20 de outubro de 2012

Gênese


Ela estava há milênios ajoelhada naquele cubículo e expunha com certa vaidade uma fratura no fêmur esquerdo. Brincava com uma Matrioshka. Tirava e recolocava as várias bonecas russas, enfiava o dedo no miolo, encontrava a menor de todas, rasgava com uma faca, duvidando da sua entranha oca, do seu corpo sem órgãos, como se através dessa manobra pudesse resolver sua demência ou seus problemas de ancestralidade.
Olhando-a assim, acreditei que ela jamais morreria, estava enganado, ela era uma barata branca e logo seria esmagada.
Não foi fácil ver seu corpo estendido na pedra. Aqueles seres estranhos, vermelhos e mascarados (sempre considerei a máscara uma repetição desnecessária), falando línguas estrangeiras, dançando e urrando, imitando o som gutural dos animais. Ofereceram-me um cálice de sangue, eu deveria celebrar a morte, sacralizar o útero que foi meu abrigo, minha origem. A caverna era escura, úmida. Havia na parede da rocha, atrás do seu corpo, o desenho de uma vulva aberta e gigante, em volta caçadores com seus membros em ereção, em outra gravura um antílope estava montado em uma mulher nua e grávida, aos seus pés demiurgos ejaculavam.
Colocaram em minhas mãos um instrumento pontiagudo, fizeram gestos que indicavam que eu deveria retirar as vísceras do cadáver e fazer uma trepanação. Hesitei, mas concordei, a matéria era uma abstração e nunca foi sólida, era uma rachadura, uma trinca no tempo-espaço.
Sei que existe um animal rastejante que circula em sentido anti-horário pelo meu útero (sou um homem castigado com um útero) se espreguiça nas minhas trompas, se enrosca nas paredes do meu intestino, como um cão de rua que não morde, mas fareja, mas fede. Trêmulo começo a estripar aquele corpo-origem. Partenogênese. Ovo cósmico.
O ritual de sepultamento continua e eu sigo fazendo a trepanação. Lamento porque nunca me senti parte desse mundo, porque quando cheguei o mundo já estava instituído. É como se eu fosse uma orelha implantada no organismo de um sapo. É como se eu tivesse despencado em um país estrangeiro e por todos esses anos continuei um exilado no meu corpo-máquina. Preciso ser civilizado, sou homem e preciso entender o sorriso fingido dos hipócritas, a boca banguela, desnuda dos desalmados. A humanidade se alimenta parindo ovos chocos. Preciso ser homem, trabalhar, acasalar, conversar, entender de política, entender a rosa dos ventos, fingir felicidade, matar os porcos que aparecem nas noites sujas, quando tenho as vértebras trincadas e pinos na mandíbula.
Nasci no corpo-simulacro de um homem evoluído. No entanto, minha alma tem uma corcunda feia e incurável, minha alma é de um egiptopiteco, um primata franzino de seis quilos.
Então, diga, como não ser arrebatado se não tenho olhos nas costas? Ando atento pela casa e em todas as portas multiplicam ferrolhos enferrujados. Como posso sorrir se sou um amontoado de átomos, os quais poderiam tanto estar em mim como numa cadeira de vime. Ela me falou que eu era fraco e por isso estava em eterna diáspora. Eu catava piolhos de um macaco de pelúcia. Só não era mais ridículo porque eu nascera inteiro, sem amputações. Era nesse ponto que ela se enganava Eu era a própria amputação, a própria rachadura na coluna de Deus. O meu quarto-mundo era uma incubadora e eu estava fadado a viver cem anos e continuar prematuro.
Um enxu de moscas andam tontas e circunspectas em torno do meu mamilo. Não sinto cócegas, não as expulso, acompanho sua coreografia macabra nas redondezas do seu peito. A angústia não é muito diversa de um amontoado de larvas de inseto. Barroca.
Coagulo a noite. Navalho a face profícua de Deus. Continuo a trepanação. Depois de um tempo eu era só o exoesqueleto de uma cigarra, vazio, solitário, oco.
Não havia dúvida do que eu deveria fazer. Abri a vulva da minha mãe e voltei ao seu útero. Invaginação do fora. As esporas, os cascos, os trotes, a noite, o beco deixaram de me incomodar.

Conto publicado originalmente em http://www.musarara.com.br/genese

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Sutura


As dobras e redobras de um corpo sem órgão:
lindo bebê deformado,
do nascimento só me sobrou a viscosidade da placenta
a linha-curvatura-do-fora-cartografia-escalas-estrias
de uma catástrofe cotidiana - memória palato fendido

no retrovisor sua imagem é uma abstração que não pode ser codificada
a subjetivação sem sujeito
nasci assim, órfão, despencado da cloaca de Deus
nos templos o homem exibe nuas cabeças decepadas

o pódium é o lugar da não-ocupação
e eu sou um homem de corpo coalhado.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Lançamento do 'Manicômio', de Rogers Silva





“Amor e morte são os temas dominantes neste primeiro livro de Rogers Silva. Causa e efeito: o amor conduzindo inevitavelmente à morte, ambos conectados num fluxo só: amor-morte. Amorte.

Perdidos num turbilhão de canções e filmes românticos, os apaixonados de Rogers Silva atravessam parágrafos vertiginosos, às vezes longos. O discurso direto copulando com o discurso indireto, a primeira pessoa com a terceira. Misturando prazeres e sofrimentos. Indo mais longe: fazendo do prazer sofrimento, do sofrimento prazer.

A linha que tudo costura — amor, morte, prazer, sofrimento — é a loucura. Cuidado, leitor desavisado. Somente com muita sorte você conseguirá escapar destas páginas com a sanidade ainda intacta. Esta coletânea de narrativas tem a mesma densidade claustrofóbica e desestabilizadora do Asilo Arkham, a notória instituição psiquiátrica da mítica Gotham City.

Está preparado para a camisa-de-força? A literatura de Rogers Silva não é para leitores comuns, é para os raros, ou só para os loucos, como queria Hermann Hesse no romance O lobo da estepe.

Insanidade cerrada. A densidade discursiva vem da complexidade existencial das personagens e do narrador. Das entidades maníacas que sofrem patafisicamente, ou seja, bem mais profundamente do que as pessoas comuns já sofreram ou vão conseguir sofrer em toda sua trivial existência.

As ficções aqui reunidas revelam o mundo desencantado de dezenas de pessoas, não só de Desseres. Há o desencanto das crianças, Hugo e Clarissa. Da insaciável Josi. Dele mesmo, Jesus Cristo. Há até o desencanto de uma canção-narradora, que conta ela mesma sua história de amor e morte.

As duas narrativas mais psicologicamente violentas são sem sombra de dúvida as mais fragmentadas, O espelho e Manicômio.

Na primeira, o diálogo intertextual com o conto de Machado rendeu um texto longo e inquietante, que seduz e incomoda simultaneamente. A louca pede ao cocheiro que não corra tanto, então o tempo começa a avançar e a recuar, os cenários vão mudando, começam a aparecer outras personagens: Carolina, Policarpo Quaresma, Campos de Carvalho, e tudo vai ganhando a consistência de um sonho.

Já estamos em pleno manicômio, onde os desejos e os impulsos mais antigos amordaçam a razão e matam o professor de lógica. Nesse estabelecimento a juventude está sem rumo (ainda, há décadas), o amor persegue a própria cauda e a morte violenta é a parada final”.

Por Luiz Bras


Sobre o autor:
Rogers Silva é escritor, professor, pesquisador e promotor de eventos. Mineiro, nasceu e mora em Uberlândia. Publicou em sites, revistas, jornais e coletâneas, dentre as quais 'Portal Solaris', 'Portal Neuromancer' e 'Portal 2001' (organizadas por Nelson de Oliveira). É colunista e co-fundador do coletivo O BULE (www.o-bule.com). Bloga em www.rogerssilvaoriginal.blogspot.com e tuíta em @rogerssilva.


Serviço:Coquetel de lançamento do livro Manicômio de Rogers Silva.
Quando: 12 de agosto de 2012 (Domingo), às 19h.
Onde: Espaço Cultural do Mercado Municipal 
(Rua Olegário Maciel, nº 255, esquina com Av. Getúlio Vargas. Uberlândia-MG).
{ Apresentação musical com Leandro Rabelo (voz e violão) e Leonor Jr (percussão). Performances inspiradas nos contos do livro. Projeção do booktrailer. Salgados, pão de queijo, café, suco e refrigerantes. Amigos, conversas, interação, alegria }
A entrada é gratuita.

* No dia do lançamento o livro será vendido por R$ 19,90.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Escamas


Ressoa a pele verde e incrustada de mágoas - clave de sol -
um verme se espreme entre as circunvoluções do meu cérebro
Respiro aliviada porque meus pelos têm a cor dos cachorros magros
Respiro aliviada porque minha alma tem a candura das tardes longas de solstício
Respiro aliviada porque minha boca perdeu o fel de antigamente.

A língua salivante  de lagarto passeia abstrata nas minhas gretas
Geme meu quadril curva desalinhada
Quero desentristecer
mas olho de soslaio as venezianas
e vejo me encarando seu sorriso entre muralhas.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Arabescos


Eu queria matar toda ancestralidade nascida em mim
Queria lixar os vincos pegajosos do passado
os vestígios dos primeiros neandertais na minha arcada dentária
apagar as ranhuras das falsas costelas
arrancar inúteis apêndices - caruncho no meio da carne -
quebrar o fêmur em dois e inventar uma nova nomenclatura anatômica
tornar minha face uma massa amorfa e não mais reconhecê-la em termos de parentesco
não conhecer homônimos, torná-la primitiva, origem, alfa,
feto de degenerados, reduto de loucos,
torturá-la até desfazê-la, de sólida matéria sublimada.
cavá-la até o limite do tutano, apalpar seu magma, devorá-la,
faz~e-la máscara-carranca e finalmente nascer,
dissolvida, combinação aleatória e contemporânea de átomos de carbono.
livre da semelhança de Deus,
livre do peso incomodo da humanidade.  

sábado, 14 de julho de 2012

O jardim branco


“O homem é a semente da degradação”

Olho para o céu e vejo Deus transformado em um pássaro negro e ele devora a carne verde que se forma em volta da minha carcaça e ele vai espalhando no músculo da rocha a minha combinação incerta de átomos.
Volto ao jardim branco em frente ao salão de festas, um acorde ainda ressoa longe no meu ouvido esquerdo. Ele continuava lá sentado no banco, como se eu estivesse ali o tempo todo mirando seu perfil. Ele me falava sobre a sua misoginia, sobre o quanto repugnava as mulheres, no entanto, elas nem eram capazes de retribuir tal aversão, eram tolas demais para experimentar o ódio. Considerava que o buraco no meio de suas pernas era a prova mais evidente e atroz de sua fraqueza. Nunca conseguira encontrar uma mulher que sustentasse a palavra até o fim, sua língua é mais ágil que seu cérebro. Diferente dos homens, que podiam ser calhordas, mas jamais voltavam atrás em seus acordos.
Divaguei um pouco enquanto ele pronunciava suas blasfêmias, o que bem poderia ser o que ele chamava de um defeito tipicamente feminino. Apalpei meu externo, à procura inútil dos meus seios, eles são ridiculamente pequenos e escorregam facilmente...
Não sei se a culpa era dos pelos grossos que cobriam todo o meu dorso ou do meu chapéu coco um tanto masculino. O fato é que ele não parecia reparar que eu era de uma espécie inferior a sua.
Estendi meus dedos em volta do pescoço como se procurasse um pomo de adão ou desapertasse uma gravata borboleta que não existia. Ele reparava em meus movimentos e pigarreava de alegria, afinal, éramos tão parecidos que ele podia se deitar na minha cama e não tocar no meu sexo, porque meu órgão era grande, pesado e imponente como o dele e como dos touros que não foram castrados. Eu não era como as outras que tinham as genitálias escondidas na abstração e nas gretas do corpo, meu clitóris despencava das minhas ancas como um sino enferrujado prestes a cair.
A mulher é cheia de pretensões e na sua cabeça germinam apenas futilidades, diz conhecer o abismo dos homens, enquanto sua alma não passa de um porão cheio de quinquilharias. Como poderia adivinhar a ranhura na face do macho? No entanto, qualquer pedra desse jardim pode dissertar mais sobre a evolução humana do que esse ser rastejante originário da vértebra fraturada de um cão sarnento.
Consegue sentir a música? Uma mulher não conseguiria, ela ficaria horas analisando sobre a importância das notas utilizadas, o compasso, o ritmo, a harmonia, porque para ela é mais  importante a origem do que o produto final. Remói os miomas do seu útero e não é capaz de reconhecer a cria que rasga sua vulva.
Ele continuava discorrendo como um maníaco depressivo. Olhei para seu rosto animalesco, para a curvatura das suas costas, um pouco disfarçada pelo terno escuro, para os seus débeis e longos dedos. Recordei da primeira vez que o vi sem roupa através da fechadura, não conseguia entender como eu podia amar um homem como aquele, um primata, eu me perguntava se ele participara daquela tal evolução que transformou os macacos em homo erectus, a sua coluna vertebral era tão envergada que eu poderia também ver a sua semelhança com um cachorro, nunca com outro homem ou com um ser divino, feito de matéria porosa e perfeita.
Embora ele não percebesse, ele também não passava de um símio, que por um erro conceitual do Ser ganhou o nome de homem.
Toquei de novo o avesso da minha cartografia. A mulher era um corpo oco até que Deus a sodomizou, ejaculou o sêmem da desgraça na sua cloaca. Então, ela deu o primeiro suspiro, descobriu que o mundo era semelhante a um pântano, deixou de ser objeto vazio para se tornar um simulacro e simultaneamente um criadouro de homem.
Quando vi o quanto era ridícula minha forma, pensei em partir. Contudo, ao olhar ao meu redor, eu percebi que estava só, não havia ninguém além de mim no jardim branco, não havia nenhuma festa no saguão, nem danças e o som de jazz que escutava não passava do coaxar dos loucos do outro lado do muro das lamentações e tampouco o jardim branco existia. Um escaravelho rolava um esterco de um lado para o outro imitando os movimentos de translação e rotação. Eu estava suspenso por uma espécie invisível de corda, eu poderia despencar a qualquer momento e experimentei o medo pela primeira vez. Dei uma cutucada embaixo das minhas costelas, não senti nada, minha carne se tornou gelatinosa e transparente. Definitivamente eu estava no não-lugar e meu nome era Deus.



quinta-feira, 24 de maio de 2012

A puta II


                                                                                                                                                                                         
Egon Schiele

Me masturbo, brinco com o clitóris e na clareira branca enxergo a vagina inchada de Deus, linda reluzente no meio das pernas. Não me olhe com os cantos fingidos dos olhos - uma rocha se eleva na sua fronte - foi você que escolheu essa liquidez, essa viagem em torno do duodeno do universo, eu sou sólida, matéria bruta, simplificação. A tua não-forma não me serve pra nada. Ser escorregadio não é qualidade, é fuga, é covardia. Gosto de homens fracos, porque é como se eu possuísse os seus membros e pudesse a qualquer hora amputá-los. Prefiro viver retirando as vértebras com o alicate para caber nesse cubículo que é o mundo a me sujeitar, me embrenhar na sua pele de lagarto ressuscitado. Não posso pagar para que me contemple. O mar existe e não precisa de você, encare isso com sensatez. Súplicas se igualam a línguas roxas de cães mortos. Quando estou acocorada sobre seu medo penso na força das mandíbulas dos crocodilos. Me perdoe se aqui seus livros servem apenas para acender fogueiras e suas teorias não passam de alucinações de uma mente doentia. Estendo meu braço para que você faça as suas inoculações, enquanto me perco num riso convulsivo. Tua moeda não pode ser contabilizada. Teu sacrifício é tempestade de meteoros em noites de seca. Você se distrai contando os nódulos da sua carne, acredita que os cistos nascem nos espíritos bem dotados, superiores. Faço um corte na coxa e enfio seus dedos, quero que veja que a realidade é suja, obscena. Você reluta, no entanto, acaba gostando do cheiro do sangue, lambe disfarçadamente o dedo médio. O amor já traz no embrião-nascimento a fissura do desmoronamento. Povoados inteiros foram exterminados, bem ou mal sobrevivemos à catástrofe. Retiramos com cuidado os estilhaços. E você fica aí contemplando as ruínas para descrevê-las. Diz que o mundo recomeçará pela narrativa da destruição. Depois da chuva, vem o sol e depois do sol as formigas grandes brotam da terra, prontas pra morrer. Reviramos durante várias noites e assustamos a nós mesmos. Retiramos as máscaras, mas as carrancas continuam lá. A farsa continua lá, a argila deformando a cara. O esboço ri da pretensão da obra acabada. Quando crianças nossa maldade era dissimulada pela ignorância. Agora querem respostas, apenas os loucos e os artistas esboçam hipóteses. A arte é uma forma segura de preservar a vida, de torná-la menos irrisória, menos miserável, um tanto cômica. A vida seria insuportável se não pudesse ser narrada. Driblada entre uma vírgula e outra. Uma fogueira conta uma história e continua. O fogo se extingue e continua. Quem conta um conto se desfaz em devaneios. Era uma vez. No princípio, o Todo Poderoso criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia. Os vermes ainda não corrompiam a carne porosa de Deus. Agora depois do apocalipse a terra volta ao vácuo, à insipidez. Olho pela fresta da janela de madeira podre, montes de sal vão se perdendo aos poucos. Me alimento dessa perda, desse desgaste natural.α De longe é bonito ver a brancura, chegamos mais perto e o vento sopra salgado em nossas bocas, resseca-racha a pele. Minha herpes estourou pela sexta vez esse ano. Imunidade baixa, é o que dizem. Os morféticos não desistem de me perseguir. Um parafuso enferrujado atravessa a tarde. A existência vai se estreitando se cabendo em si. Perde o sentido. Sim, não me importo, vou começar de novo para que me entenda melhor. Foi isso mesmo que escutou. Não é devaneio. Um homem grande e forte arrastava alguma coisa, devia ser um corpo ou uma carcaça (de animal?). Ele mancava. Não dava pra saber se o sangue era da sua perna deficiente ou do corpo que arrastava com um pouco de dificuldade. O negócio é que nevava, a noite estava tão branca que tive a sensação que a cocaína cobria o mundo (embora agora, depois da guerra, era raro conseguir tal droga) e isso era bom. Respirei fundo. Eu sei, eu sei, aqui não costuma nevar, mas naquela madrugada... O certo é que não sei direito como adormeci nem o que sonhei, parecia que eu tinha levado uma bordoada na nuca e quando acordei, embora o sol não estivesse forte, afinal, era outono, a neve já tinha derretido, nem o homem nem a carcaça estavam mais lá. Parece difícil de acreditar, no entanto, foi isso que aconteceu. Pode escrever aí. (Continuo) Aprendi a jogar tarôt para me distrair, fingir adivinhar o que é tão óbvio. A vida começa a recobrar o sentido, estendo a toalha branca sobre a mesa, coloco as cartas - o enforcado, ela se ressuscita estrangulada nos vãos obscenos da laringe e da epiglote. Engolida a palo seco. A garganta é o esboço da buceta. E tenho joanetes na buceta. Todos os dias nos enfiam um pau duro no rabo. E tiram antes que se chegue ao gozo.  Conto na rachadura dos dias todos os meus coitos interrompidos. A ressaca rasga-rompe as manhãs. Anunciação. Mais uma vez gritam, mais uma vez o eco responde Anunciação. Gosto dos brejos e dos rios temporários, que de vez em quando são deserto, promessa, espera de chuva, morada de caranguejo, criança caminhando no fundo. Crescemos e boiamos na superfície, matéria aerada, zunido de besouro, furúnculo na perfeição de Deus. Os olhos dos caranguejos me assustam, são móveis, olhos humanos, acusadores. Não que a culpa me seja um dom. Não herdei essa culpa que faz do homem um ser caridoso. Advogo para os monstros. Faço vivissecções em cães raivosos. Não acredito em réus primários. Não existe a quem recorrer- todos juízes da própria carne. Os cavalos escutam apenas os seus trotes cada um que cuide do seu casco. O meu é único, pouso de moscas. Alívio de larva. O que imaginou? Alguém pedindo licença e retirando seus escombros? Alguém lambendo tua mortalha? Vigiando seus passos? Aqui os olhos são duas covas no meio da cara. Aqui todos os mortos são enterrados nus. Os músculos são descolados dos ossos, rompidos feito elástico podre. As roupas são dadas aos jovens e as jóias roubadas pelos mais espertos. Nada se leva da vida. Que fique bem claro. Não se engana o diabo. Caminhe sem tirar os pés da lama. Confie em mim, você não afundará, sua alma tem o peso dos desacordados. Grite à vontade, o som não se propaga no vácuo. A única coisa que pode fazer é contar as feridas, os arranhões para esquecer as tripas expostas, lamber o esperma que escorre do seu abdômen, se alimentar de você mesmo. As pústulas ainda se espalham rapidamente pelo seu corpo, em breve você partirá. Acordo e mantenho as janelas cerradas.


α quando criança me admirava da onipotência da erosão, do seu poder de mudar as  formas das coisas grandes, ainda hoje ela me assusta

Revista Arraia PajéurBR


Um conto meu no número 4 da Revista Arraia PajéurBR. Quem puder, confira. O lançamento da Revista impressa será no dia 19 de junho na Galeria Funarte:

http://www.arraiapajeurbr.com/num4/num4.html

terça-feira, 13 de março de 2012

A puta - 1



Por Marcia Barbieri
                                                                          Egon Schiele                                                         

α[Prelúdio]. Sim. Foi isso. Não me lembro exatamente da posição dos corpos. Direita, esquerda, sempre fui uma pessoa confusa. Depois a tempestade e a água vindo e a enxurrada despencando nas zonas abissais do tempo. A outra orelha do silêncio. A boca escancarada de Deus. Salivei recordando a finitude da minha carne, a curva perigosa da anca, os meus buracos desviando a atenção dos homens, as estrias indicando o caminho, os pelos encravados gerando abscessos. Sinal de sorte, alguns tolos diziam. Cisão, li essa palavra em alguma narrativa e nunca mais esqueci. Cindida, era assim que eu era desde o começo, quando a baba povoava o queixo, quando ainda não tinha a noção de que as coisas se dividiam em períodos e a minha coluna vertebral ainda se prolongava em um rabo. Às vezes, ainda sinto dores no rabo, como se meu cóccix não tivesse fim, um apêndice do mundo. Colo o ouvido na parede. Um barulho de faca afiando a pedra. .O aço amortecendo o sonho da rocha coalhando o chão decantando a vida. Vidros moídos com as mãos inábeis de um louco. Loucos detestam espelhos. Duplos. O dedo era um só (penso na solidão das masturbações) e eram múltiplas as impressões digitais. Homens refratários. Olho minha face de relance. Uma formiga me distrai. Não tenho coragem de me encarar demoradamente. As acnes abandonaram minha pele. Nada mais recorda a juventude. Aqui a moldura laranja se desprende do espelho. Tento desencaixar, não consigo, minhas mãos tremem. Escuto o amolador de facas arrastando seu carrinho. Um dos únicos sobreviventes. Um resto de cocaína se espreme entre meu rosto e a moldura. Coloco um pouco na ponta da língua para verificar se é da boa. O cheiro é o início da perdição. O odor é branco, quase cega. Olho de frente, olho de perfil, de esguelha, meu rosto se dilata, se contrai numa espécie de pompoarismo. A boca expulsando o embrião adormecido. Lá fora o mesmo buraco. O chão ocupando espaço. Planta rasteira fingindo arbusto. Os ossos se amontoando num canto. As moscas gordas boiando no ar pesado. O nascimento esquizofrênico do sol. Meus joelhos doem. Não aguento mais ficar agachada para me enquadrar. A vida inteira acocorada para se desviar do poente. Raios e diâmetros medindo a ausência. A distância é mais fluída do que podíamos imaginar. Meu corpo sofre a erosão dos ventos. Os vivos imitam os rituais dos mortos. Um punhal corta o lume fosco da noite. Risca o mundo ao meio. Xilogravura bem talhada. Anoitece apesar de mim. Amanhece apesar de Deus. Grafiti nos muros brancos que separam a Vila do resto da humanidade. O humano cheira a ferro corroído. Desova de peixes. Mãe depois do parto. Cachorro molhado. Ontem o pescador ficou por quatro horas olhando as águas baterem nas rochas. O gosto das sementes que acabaram com as lavouras ainda está flutuando na minha saliva. Examino o mundo e mordo a língua. O meu cuspe é espesso, caustico, tem gosto de ódio antigo. A ruindade me tornou múltipla, carne vasta, raiz forte espalhada entre os túmulos de gente estranha. Meus membros são estrangeiros e distantes dos meus dedos. Não tenho pena dos homens que lamentam a sorte. A fraqueza me enoja. Não dou conselhos a suicidas. Ainda assim rezo por eles. Planto folhas de arruda atrás da orelha. Nenhuma mostra inclinação pra nascer. Me calo. O silêncio assombroso do leite derramando e espalhando a nata grossa. Camuflando a brasa. Engordurando a madrugada. Embranquecendo a vista esburacando a mucosa nos desfazendo revirando o intestino assoprando no seu ânus de merda. As duchas intestinais não resolvem mais o problema, é tua alma que está contaminada. Tua medula óssea verte mágoas e você não pode suportá-las. Você nem sequer sabe a diferença entre um risco e um corte profundo. Você esqueceu sua língua entre minhas pernas e agora é um homem mudo.  Estrangulado pelo silêncio. A mudez corrompe mais do que a multidão. Seu ventre abaulado disputa espaço entre as serpentes. ¿Pra que continuar inventando mentiras se já sei de tudo¿ E o carrasco discorre horas e horas sobre humanismo enquanto você lambe meu cu feito um cachorro desesperado. Você sabe que tudo deu errado, você não está mais no controle. Nunca gostei de dormir com filósofos. Entre uma foda e outra metafísica furada. Pede desculpas pelo prazer que não me deu. Sou bicho, é só isso que quero ser, não tente me tornar menos animalesca. Não tente explicar um prazer furtado para uma cadela. A língua daquele filósofo filho da puta não é capaz de me proporcionar orgasmos. Ao contrário, sua língua densa me entristece me empurra pra fora do mundo e me rotula de mulher pública. Minha vagina um buraco negro, uma anti-matéria, um nada ancestral. Não nascer é melhor do que viver no uivo. Horas e horas de cálculos de latitudes e longitudes, nomes de constelações, estrelas em formas de animais terrenos, hidra cão urso escorpião, uma astronomia de abismos. Como esquadrinhar minha buceta sem sublimar-desaparecer?


α avistei homens chupando com desespero (ou seria fome?) as falanges de um primata, estavam em roda, uma fogueira esquentava o olho vesgo da madrugada.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A ilha do dia anterior





Havia um barulho de moedas
despencando na noite
e o bater de asas desarmônico das moscas
o azul terno das moscas moribundas.

Pareciam sinos entoando tristes melodias
e eu pensava em partir,
ouvindo o apito urgente dos navios,
embora não houvesse portos nos arredores
nem sonhos despedaçados de velhos marinheiros.

As coisas não acabam quando terminam – desterros,
precisam se acostumar  com a solidão dos relógios parados,
dos pêndulos desnudos – A crônica da casa assassinada
com a sublimação agonizante das naftalinas.

os objetos se desfazem antes ou depois
se espremendo numa verdade inventada,
Partida –ficção e traças...

Pinto o rouge et noir
dos morangos mofados
lagartas sem metamorfoses
queimando o oco do meu peito
- ensurdeço.

A gosma branca da solidão
anda feito lesma no meu dorso
um resto em retardo do seu gozo.

Hoje,
tétano nos meus olhos enferrujados
de tanto ver.
A dor é uma crosta espessa
falsos moluscos enrodilhando minha pele
Peixes estripados.