SÁBADO, 2 DE NOVEMBRO DE 2013
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RETALHOS DA EXISTÊNCIA
Não consigo, o que eu quero é muito difícil, é tocar o abstrato, torná-lo palpável.
Márcia Barbieri
Em seu primeiro romance Márcia Barbieri, agora num espaço maior do que a estrutura do conto permite, tal como demonstrou com o seu: As mãos mirradas de deus (2011), continua em seu combate com as palavras, fato este que aponta a metáfora como injustiça e até mesmo redutor em referência ao seu trabalho. Talvez, as mesmas palavras utilizadas pela Professora Dra. em semiótica Telma Maria Vieira para analisar uma parte da obra da Sra. Lispector, ajudem a percorrermos o Mosaico de Rancores com um pouco mais de clareza:
... protagonistas-narradoras, que se deparam com o fato de precisarem narrar fazendo uso de palavras que, enquanto signos, não tem possibilidade de expressar inteiramente o objeto. Desse modo, essas personagens experimentam um embate com a linguagem. (pg.33)*
Aqui abandonamos a escritora que atua na esfera de comunicação externa da obra, para nos aproximarmos de Maria Luiza a personagem que consequentemente, é a voz que atua quase que na íntegra ao longo da primeira parte da narrativa, intitulada como Olhos de cão.
Malu tem como receptor supremo de sua mensagem Lúcio, um fotógrafo com quem ela possui uma relação tumultuada, contudo, este se encontra ausente na maior parte do tempo em que a protagonista emite seu discurso, o que a torna numa espécie de Alcebíades que prefere não comparecer ao Banquete, para que assim possa imaginar situações vivenciadas por seu Sócrates (Lúcio): O almoço esfria na mesa. Não tenho fome. As poses insinuantes daquelas putas oferecidas. (pg. 23)
A ausência do artista funciona como um motor que impulsiona uma verborragia criadora de imagens, diálogos com obras de diversas linguagens do mundo das artes, o que nos faz saltar para a comunicação externa da obra, apreciando o enorme arsenal do qual desfruta a escritora na construção de sua heroína, justificando um estado híbrido entre o fazer poético e a arte de narrar.
A repetição de algumas imagens que pode ser encarada por leitores mais rasos como falha de estilo, na verdade, constituí a metalinguagem presente na obra, pois o tecer de retalhos que Malu desenvolve com tecidos é semelhante ao procedimento linguístico constatado em seu discurso-delírio, que recorta fatos e os mistura em fragmentos da memória, desde a morte de uma irmã, à figura de um pai opressor, chegando a um amante infiel e ausente e um cunhado a quem deseja e imagina ser desejada, num ritmo de flashes curtos, nos quais trechos vão se apresentando e reapresentando, de maneira que possa ressignificar o estado de neurose no qual se encontra a personagem, que assim como qualquer neurótico repete, mas não em ritmo maquinal, e sim como escreveu Moska: Repetir, repetir até ficar diferente.
Deixando o leitor ao final da primeira parte ao menos com uma indagação precisa: Serão tais olhos confiáveis?
Em Clareira segunda parte da obra, ocorre uma inversão no fluxo narrativo, agora Lúcio toma o lugar de emissor e Maria Luiza, calada é observada sem intervir no discurso que começa brando e desmentindo muito do que fora dito ao longo da primeira parte da obra.
O fotógrafo, não por acaso, se apropriando dos recursos empregados em sua arte, torna a narrativa em alguns momentos próxima ao que fazem os cronistas, buscando o rigor do instante:
Fico o resto do tempo sentado folheando uma revista, fingindo interesse. As pessoas comem, arrotam e camuflam seus problemas. Sacos de salgadinho entre os vãos do banco. (pg.153)
É possível que muitos leitores ao encontrarem a derradeira página 168 se questionem: O que há de real nisso tudo? Talvez esta não seja a questão, pois aqui, não há espaço para explicações e descrições pragmáticas sobre o real, esta não é uma obra para se ler e buscar refúgio na razão, mas sim para ser sentida palavra-desabitada por palavra-ressignificada apontando a direção da sensibilidade, que de tão real pode ser confundida com a técnica: A escuridão de uma clareira.
*VIEIRA, Telma Maria, Clarice Lispector: uma leitura instigante, Annablume, São Paulo: 2004
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