sábado, 31 de maio de 2014

Meu conto "Quando os maracujás florirem" na Revista Flaubert


Meu caro, não, meu querido, não, meu esposo, não, meu companheiro, não, melhor poupar designações, tudo que nomeio me compromete e não diz nada, talvez por isso as letras me interessem tanto, sim, pela sua incrível ineficácia. Melhor eu começar assim, escrevendo assim, do início, sem remetente, uma carta nunca deve ser lida por apenas um leitor, uma carta tem segredos que dizem respeito a quase todos, pequenas banalidades e deslizes que muitos cometem. Também não colocarei data, as coisas foram acontecendo assim, ao longo de tantos anos que colocar um número exato daria uma impressão errada dos acontecimentos e parecerá que um dia preciso nos desentendemos e resolvemos desembaraçar e você sabe, não foi bem assim, as tragédias acontecem um pouco a cada dia. Primeiro um hematoma perto da virilha, um tombo pequeno, uma ralada no joelho, depois uma queda e um braço quebrado, depois uma escada e uma fratura exposta, depois as varizes que estouram de repente e inundam a sala de um sangue vermelho e grosso. Não, também não foi assim, acho que primeiro foram os cachos, as uvas em cima da fruteira, sim, aquelas brilhantes, feita de plástico. Não sei bem, nunca fui muito ligada a métodos e números cardinais. Não, foi ainda antes disso, desde muito cedo me apaixonei pelas parreiras e nem sei ao certo porque elas me causavam tal encanto, eu poderia passar tardes inteiras olhando os caminhos que seus ramos percorriam e ao anoitecer já não me recordava das trilhas e era necessário pela manhã recomeçar meu trabalho de catalogação. O primeiro ramo a nascer se estendia em direção ao telhado se furtando do compromisso de seguir o estaleiro-quadrilátero que compomos quando trouxemos as minúsculas mudas. Essas mudas não irão pra frente, veja estão tão fraquinhas, se eu fosse você eu plantaria maracujás, você já viu como são bonitas as flores do maracujá¿ Ou quem sabe aquelas margaridas miudinhas, eles dão em qualquer lugar. Sim, eu compreendia e sim ele não era eu, de forma que se fosse, ele jamais plantaria maracujás e se ele fosse eu ele saberia perfeitamente que eu não suporto os maribondos que perseguem as florações e nem qualquer outro tipo de inseto voador. Não, ele não era eu, caso fosse saberia que minha infância inteira eu vi os maracujás penderem da cerca que separava minha casa da casa vizinha. Se ele fosse eu ele saberia que não suportava lembrar a brutalidade que minha mãe arrancava os frutos ainda verdes do pé para que a mulher da casa ao lado não tocasse suas mãos sujas no fruto. Se ele fosse eu ele saberia que a única moça que eu amei na vida morava na casa ao lado, sim ele saberia e sim ele não me chamaria de lésbica quando conto essa história, não diria que no tempo dele mulheres que amavam mulheres morriam solteiras, não ele não diria, ele não diria que no bairro, ele e seus amigos comiam mulheres que gostavam de mulheres. Sim, ele saberia que as mulheres se camuflam de homens muito melhores que os homens. Ah, se ele fosse eu ele saberia perfeitamente que eu não me empenharia em cuidar de flores miúdas que dão em qualquer matagal, que eu não me abaixaria, não tocaria minha bunda na terra e não tiraria os capins que cobrem as flores pequenas e se ele fosse eu ele saberia que eu só cuidaria em vida das parreiras, só delas e de mais ninguém... Mas sim, ele nem passava perto do que eu era e nas raras vezes em que pedi para que ele se colocasse no meu lugar, ele se levantava do sofá e dizia que não ligava a mínima, e de baboseira e pontos de vista e referência já bastavam as aulas de geografia e que elas tinham ficado para trás faz tempo, se eu quisesse mesmo que ele se colocasse no meu lugar que lhe arranjasse uma buceta, só assim saberia ser mulher e pensar com a futilidade de uma mulher. Falava e espirrava pequenos jatos de água com a boca. Então, eu tinha certeza, ele jamais seria capaz de ter uma buceta e nessas horas eu tinha fé, Deus não teria colocado um buraco no meio das pernas dos homens, não mesmo, até mesmo o cu duvido que seja coisa de Deus. Passei muitas noites acordada pensando em uma maneira de me vingar, se tivéssemos filhos poderia levá-los para longe e proibir suas visitas, mas ele nunca quis ter filhos, dizia que a próxima geração era de pervertidos e ele não se arriscaria, podíamos ter gatos e cachorros e uma tartaruga, se quisesse ser mais exótica. Não, eu não era exótica, exceto as parreiras. Às vezes, durante a noite, eu escutava sua barriga fazer barulhos terríveis e então, pensava, ele podia ter uma úlcera incurável, no entanto, logo depois você arrotava alto e dizia, puxei minha mãe, tenho estomago de avestruz, eu desanimava com minhas pequenas vinganças invisíveis, não seria tão fácil te perder. Maquinava em minha cabeça diversas formas de machucá-lo, fazer com que não voltasse mais, enquanto isso, eu via cachos verdes em miniatura despencando da parreira, logo as uvas poderiam ser colhidas, no começo do ano talvez. Uma noite escrevi uma novela de duzentas páginas inspiradas em você, foi inútil, você dizia que detestava literatura, era tudo uma balela e que aquelas páginas só serviriam mesmo para limpar a bunda. Esquece, literatura não serve para nada mesmo, é como disse, as letras me interessam pela sua ineficácia. Agora não haveria erro, minha vingança não tinha como falhar, você não teria como escapar, você estava preso no estaleiro-quadrilátero que compomos. Esqueci de perguntar ao meu pai as pragas que atingem as parreiras, depois resolvo isso. Sim, o mais importante agora era a minha vingança. Sim, o estaleiro parecia forte, sim, você era bom com as construções. Cinquenta e dois quilos, sim, era um bom peso. Como fazia todas as tardes, coloquei a cadeira embaixo e fiquei admirando os ramos e agora também admirava o espetáculo dos primeiros frutos. Amarrei a corda, subi na cadeira e depois o chute. Ainda sinto o cheiro das flores de maracujá e o gosto do beijo de Estela e da surra e da briga eterna entre meus pais e a vizinha-vadia-mãe-solteira que não sabia dar educação para filha, a filha que tinha gostos exóticos. Sim, você tinha razão, devíamos ter escolhido os maracujás ou as margaridas ordinárias. Não, não se preocupe, o capim não está tão alto, peça um pouco de mata-mato para meu irmão, vamos você deveria saber que os cachos demoram para crescer, sim, melhor eram as margaridas ordinárias.

Pulicado originalmente na Revista Flaubert número 1: http://issuu.com/revistaflaubert/docs/flaubert

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