Meu caro, não, meu querido, não, meu
esposo, não, meu companheiro, não, melhor poupar designações, tudo que nomeio
me compromete e não diz nada, talvez por isso as letras me interessem tanto,
sim, pela sua incrível ineficácia. Melhor eu começar assim, escrevendo assim,
do início, sem remetente, uma carta nunca deve ser lida por apenas um leitor,
uma carta tem segredos que dizem respeito a quase todos, pequenas banalidades e
deslizes que muitos cometem. Também não colocarei data, as coisas foram
acontecendo assim, ao longo de tantos anos que colocar um número exato daria
uma impressão errada dos acontecimentos e parecerá que um dia preciso nos
desentendemos e resolvemos desembaraçar e você sabe, não foi bem assim, as
tragédias acontecem um pouco a cada dia. Primeiro um hematoma perto da virilha,
um tombo pequeno, uma ralada no joelho, depois uma queda e um braço quebrado,
depois uma escada e uma fratura exposta, depois as varizes que estouram de
repente e inundam a sala de um sangue vermelho e grosso. Não, também não foi
assim, acho que primeiro foram os cachos, as uvas em cima da fruteira, sim,
aquelas brilhantes, feita de plástico. Não sei bem, nunca fui muito ligada a
métodos e números cardinais. Não, foi ainda antes disso, desde muito cedo me
apaixonei pelas parreiras e nem sei ao certo porque elas me causavam tal
encanto, eu poderia passar tardes inteiras olhando os caminhos que seus ramos
percorriam e ao anoitecer já não me recordava das trilhas e era necessário pela
manhã recomeçar meu trabalho de catalogação. O primeiro ramo a nascer se
estendia em direção ao telhado se furtando do compromisso de seguir o
estaleiro-quadrilátero que compomos quando trouxemos as minúsculas mudas. Essas
mudas não irão pra frente, veja estão tão fraquinhas, se eu fosse você eu
plantaria maracujás, você já viu como são bonitas as flores do maracujá¿ Ou
quem sabe aquelas margaridas miudinhas, eles dão em qualquer lugar. Sim, eu
compreendia e sim ele não era eu, de forma que se fosse, ele jamais plantaria
maracujás e se ele fosse eu ele saberia perfeitamente que eu não suporto os
maribondos que perseguem as florações e nem qualquer outro tipo de inseto
voador. Não, ele não era eu, caso fosse saberia que minha infância inteira eu
vi os maracujás penderem da cerca que separava minha casa da casa vizinha. Se
ele fosse eu ele saberia que não suportava lembrar a brutalidade que minha mãe
arrancava os frutos ainda verdes do pé para que a mulher da casa ao lado não
tocasse suas mãos sujas no fruto. Se ele fosse eu ele saberia que a única moça
que eu amei na vida morava na casa ao lado, sim ele saberia e sim ele não me
chamaria de lésbica quando conto essa história, não diria que no tempo dele
mulheres que amavam mulheres morriam solteiras, não ele não diria, ele não
diria que no bairro, ele e seus amigos comiam mulheres que gostavam de mulheres.
Sim, ele saberia que as mulheres se camuflam de homens muito melhores que os
homens. Ah, se ele fosse eu ele saberia perfeitamente que eu não me empenharia
em cuidar de flores miúdas que dão em qualquer matagal, que eu não me abaixaria,
não tocaria minha bunda na terra e não tiraria os capins que cobrem as flores
pequenas e se ele fosse eu ele saberia que eu só cuidaria em vida das
parreiras, só delas e de mais ninguém... Mas sim, ele nem passava perto do que
eu era e nas raras vezes em que pedi para que ele se colocasse no meu lugar,
ele se levantava do sofá e dizia que não ligava a mínima, e de baboseira e
pontos de vista e referência já bastavam as aulas de geografia e que elas
tinham ficado para trás faz tempo, se eu quisesse mesmo que ele se colocasse no
meu lugar que lhe arranjasse uma buceta, só assim saberia ser mulher e pensar
com a futilidade de uma mulher. Falava e espirrava pequenos jatos de água com a
boca. Então, eu tinha certeza, ele jamais seria capaz de ter uma buceta e
nessas horas eu tinha fé, Deus não teria colocado um buraco no meio das pernas
dos homens, não mesmo, até mesmo o cu duvido que seja coisa de Deus. Passei
muitas noites acordada pensando em uma maneira de me vingar, se tivéssemos
filhos poderia levá-los para longe e proibir suas visitas, mas ele nunca quis
ter filhos, dizia que a próxima geração era de pervertidos e ele não se
arriscaria, podíamos ter gatos e cachorros e uma tartaruga, se quisesse ser
mais exótica. Não, eu não era exótica, exceto as parreiras. Às vezes, durante a
noite, eu escutava sua barriga fazer barulhos terríveis e então, pensava, ele
podia ter uma úlcera incurável, no entanto, logo depois você arrotava alto e
dizia, puxei minha mãe, tenho estomago de avestruz, eu desanimava com minhas
pequenas vinganças invisíveis, não seria tão fácil te perder. Maquinava em
minha cabeça diversas formas de machucá-lo, fazer com que não voltasse mais,
enquanto isso, eu via cachos verdes em miniatura despencando da parreira, logo
as uvas poderiam ser colhidas, no começo do ano talvez. Uma noite escrevi uma
novela de duzentas páginas inspiradas em você, foi inútil, você dizia que
detestava literatura, era tudo uma balela e que aquelas páginas só serviriam
mesmo para limpar a bunda. Esquece, literatura não serve para nada mesmo, é
como disse, as letras me interessam pela sua ineficácia. Agora não haveria
erro, minha vingança não tinha como falhar, você não teria como escapar, você
estava preso no estaleiro-quadrilátero que compomos. Esqueci de perguntar ao
meu pai as pragas que atingem as parreiras, depois resolvo isso. Sim, o mais
importante agora era a minha vingança. Sim, o estaleiro parecia forte, sim,
você era bom com as construções. Cinquenta e dois quilos, sim, era um bom peso.
Como fazia todas as tardes, coloquei a cadeira embaixo e fiquei admirando os
ramos e agora também admirava o espetáculo dos primeiros frutos. Amarrei a
corda, subi na cadeira e depois o chute. Ainda sinto o cheiro das flores de
maracujá e o gosto do beijo de Estela e da surra e da briga eterna entre meus
pais e a vizinha-vadia-mãe-solteira que não sabia dar educação para filha, a
filha que tinha gostos exóticos. Sim, você tinha razão, devíamos ter escolhido
os maracujás ou as margaridas ordinárias. Não, não se preocupe, o capim não
está tão alto, peça um pouco de mata-mato para meu irmão, vamos você deveria
saber que os cachos demoram para crescer, sim, melhor eram as margaridas
ordinárias.
Pulicado originalmente na Revista Flaubert número 1: http://issuu.com/revistaflaubert/docs/flaubert
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