"Sim.
Foi isso. Eu vi a vértebra de Deus. O pôr do sol penetrando entre os discos da
sua coluna. A hérnia saltou e pulsou dentro da minha vagina. Era o início da
degeneração do criador." Esta abertura é uma das mais belas que conheço na
literatura brasileira, entre obras de prosa e poesia. Com efeito, “A puta”, de
Márcia Barbieri, é um dos mais festejados romances lançados em 2015 e, no
entanto, é um poema. Não por conter alguns dos mais belos versos (ou frases)
que entre nós se escreveram nos últimos anos, ou cintilar em passagens em que,
se diz, a prosa vira poesia, mas por, o tempo inteiro, transcorrer no
território das revelações, das emoções explosivas e imprevistas, de instantes
em que o mundo parece se mostrar (desvelar) pela primeira vez. Do jeito que
“Cem anos de solidão” é um poema, em que os Buendía são mitos de uma
(re)descoberta da América Latina. Acontece que a “A puta” é um poema por ser um
antipoema, uma antimitologia; o grande mito aqui é o corpo, o desejo; tanto
tergiversamos, tanto evitamos, encobrimos, fugimos, negamos, que Márcia
Barbieri precisou nos dizer o óbvio: que cu é cu, boceta é boceta, merda é
merda, pica é pica, foder é foder e assim por diante. Com esta crueza, claro.
Em várias passagens, Márcia, ou, por outra, a
personagem-título, em primeira pessoa, nos lembra que não pretende ser
profunda, ou sutil, ou metafórica, ou simbólica. Não apenas não pretende ser,
mas nega a existência de tais profundidades. E, no entanto, os grandes amores
de nossa personagem são um poeta e um filósofo. Ora, ora. O primeiro morre ao
concluir sua grande obra e a Puta se estarrece ao ler-lhe as infinitas páginas.
Relê. Inacreditável. Centenas e centenas de páginas contendo apenas a expressão
“ohum”. Ele estava magro, acabado mesmo. “A obra pesava mais que o autor.” Ao
“preparar” o corpo, ela se toma de desejo, e fode com o cadáver. Alivia-se,
assume-se. Des’realiza-se.
O aborto, inclusive para nós, que defendemos o
direito a ele, é uma das maiores violências que uma mulher pode cometer contra
si mesma. É traumático física e emocionalmente, por questões biológicas,
éticas, espirituais, sociais. As páginas em que se dá uma tentativa de aborto
em “A puta” são diretamente geniais. O incômodo, o nojo, os sentimentos baixos,
desprezíveis, a indiferença que vira horror (no leitor) diante do lugar e do
ato em si são tão impactantes que o óbvio vira insólito, o carnal, a matéria
mais crua vira o insólito, a ausência absoluta de sentimentalismo vira um dos sentimentos
(um “inominável”) mais intensos que qualquer leitor pode experimentar. Durante
este paroxismo (o momento de eliminar a vida que gera), a personagem se toma de
desejo e fode com a aborteira. Alivia-se, sucumbida. Nada sutil, nada
simbólico, como se vê. E, no entanto, sutileza em avalanche, no(s) sentido(s)
em que vai gerando em nós sensações ao mesmo tempo conhecidas e imponderáveis,
até nos açodar, nos açambarcar, de forma inelutável, naquilo que nos queima a
flor da pele, mas negamos, e renegamos, não apenas por evitar atos e
sentimentos desprezíveis, mas por hipocrisia mesmo.
Eu li que Márcia foi indagada por muitos se o livro
é autobiográfico. É muita estultice achar-se entre tanta crueza imaginativa e
pensar que alguém viveu aquilo. E, no entanto, “A puta” é autobiográfico,
claro. Ela é o desejo. A puta é todos nós. (Falar nisso, o mais estarrecedor,
para mim, em “Cem anos de solidão”, não foi tanto a imaginação que “assombrou o
mundo” de García Márquez, mas o fato de que o livro é a história da família
dele, narrada de forma fantástica: é tudo “verdade”.)
“A puta” é um livro sobre o desejo, mas não sobre a
profundidade do desejo (como em “O império dos sentidos”, o filme de Nagisa
Oshima). É, na verdade, sobre a antiprofundidade. Não mergulha no desejo para
tocar o abstrato, o oculto, o espiritual; e, sim, chafurda no desejo, no corpo,
na alma, para “revelar” (literalmente: velar de novo, novos sentidos nos
sentidos; ausência de espiritualização – e, no entanto, espiritualização,
revelação, “mistério”) a própria carne, as mucosas, a pele, as feridas, as
fraquezas, a ausência de sentido da existência, estas coisas básicas, rasas,
evidentes, que, de tanto saber, ignoramos. A profundidade de “A puta” é a nossa
própria. Cu é cu. Merda é merda.
E, no
entanto: como é pungente quando a merda é merda, e não algo que está para além
da escatologia; como é dolorido quando foder é foder, e não uma “interpretação”
(literalmente: uma escavação – foder significa cavar) do sexo; como é
metafísico, como é ontológico quando a dor é palpável, quando a ausência é o
que não podemos tocar, quando o desamparo não é diante do tempo, ou do
insondável, ou do inescrutável, mas diante de nós mesmos, tão somente, diante
de nós, bichos, do sol, da chuva, da pedra, da lama; como é difícil esta poesia
que de tanto ser negada nos assalta, nos abalroa, e, sem favor, como é linda e
profunda: o final de “A puta” é, como o início, um dos mais belos que conheço
na literatura brasileira. Vamos lê-lo, minha gente, vamos nos entregar a nós
mesmos, mergulhar para fora de nós, para nossa renegada superfície.
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