quinta-feira, 19 de maio de 2016

Notas de "A Puta" por Edson Coelho




            "Sim. Foi isso. Eu vi a vértebra de Deus. O pôr do sol penetrando entre os discos da sua coluna. A hérnia saltou e pulsou dentro da minha vagina. Era o início da degeneração do criador." Esta abertura é uma das mais belas que conheço na literatura brasileira, entre obras de prosa e poesia. Com efeito, “A puta”, de Márcia Barbieri, é um dos mais festejados romances lançados em 2015 e, no entanto, é um poema. Não por conter alguns dos mais belos versos (ou frases) que entre nós se escreveram nos últimos anos, ou cintilar em passagens em que, se diz, a prosa vira poesia, mas por, o tempo inteiro, transcorrer no território das revelações, das emoções explosivas e imprevistas, de instantes em que o mundo parece se mostrar (desvelar) pela primeira vez. Do jeito que “Cem anos de solidão” é um poema, em que os Buendía são mitos de uma (re)descoberta da América Latina. Acontece que a “A puta” é um poema por ser um antipoema, uma antimitologia; o grande mito aqui é o corpo, o desejo; tanto tergiversamos, tanto evitamos, encobrimos, fugimos, negamos, que Márcia Barbieri precisou nos dizer o óbvio: que cu é cu, boceta é boceta, merda é merda, pica é pica, foder é foder e assim por diante. Com esta crueza, claro.
Em várias passagens, Márcia, ou, por outra, a personagem-título, em primeira pessoa, nos lembra que não pretende ser profunda, ou sutil, ou metafórica, ou simbólica. Não apenas não pretende ser, mas nega a existência de tais profundidades. E, no entanto, os grandes amores de nossa personagem são um poeta e um filósofo. Ora, ora. O primeiro morre ao concluir sua grande obra e a Puta se estarrece ao ler-lhe as infinitas páginas. Relê. Inacreditável. Centenas e centenas de páginas contendo apenas a expressão “ohum”. Ele estava magro, acabado mesmo. “A obra pesava mais que o autor.” Ao “preparar” o corpo, ela se toma de desejo, e fode com o cadáver. Alivia-se, assume-se. Des’realiza-se.
O aborto, inclusive para nós, que defendemos o direito a ele, é uma das maiores violências que uma mulher pode cometer contra si mesma. É traumático física e emocionalmente, por questões biológicas, éticas, espirituais, sociais. As páginas em que se dá uma tentativa de aborto em “A puta” são diretamente geniais. O incômodo, o nojo, os sentimentos baixos, desprezíveis, a indiferença que vira horror (no leitor) diante do lugar e do ato em si são tão impactantes que o óbvio vira insólito, o carnal, a matéria mais crua vira o insólito, a ausência absoluta de sentimentalismo vira um dos sentimentos (um “inominável”) mais intensos que qualquer leitor pode experimentar. Durante este paroxismo (o momento de eliminar a vida que gera), a personagem se toma de desejo e fode com a aborteira. Alivia-se, sucumbida. Nada sutil, nada simbólico, como se vê. E, no entanto, sutileza em avalanche, no(s) sentido(s) em que vai gerando em nós sensações ao mesmo tempo conhecidas e imponderáveis, até nos açodar, nos açambarcar, de forma inelutável, naquilo que nos queima a flor da pele, mas negamos, e renegamos, não apenas por evitar atos e sentimentos desprezíveis, mas por hipocrisia mesmo.
Eu li que Márcia foi indagada por muitos se o livro é autobiográfico. É muita estultice achar-se entre tanta crueza imaginativa e pensar que alguém viveu aquilo. E, no entanto, “A puta” é autobiográfico, claro. Ela é o desejo. A puta é todos nós. (Falar nisso, o mais estarrecedor, para mim, em “Cem anos de solidão”, não foi tanto a imaginação que “assombrou o mundo” de García Márquez, mas o fato de que o livro é a história da família dele, narrada de forma fantástica: é tudo “verdade”.)
“A puta” é um livro sobre o desejo, mas não sobre a profundidade do desejo (como em “O império dos sentidos”, o filme de Nagisa Oshima). É, na verdade, sobre a antiprofundidade. Não mergulha no desejo para tocar o abstrato, o oculto, o espiritual; e, sim, chafurda no desejo, no corpo, na alma, para “revelar” (literalmente: velar de novo, novos sentidos nos sentidos; ausência de espiritualização – e, no entanto, espiritualização, revelação, “mistério”) a própria carne, as mucosas, a pele, as feridas, as fraquezas, a ausência de sentido da existência, estas coisas básicas, rasas, evidentes, que, de tanto saber, ignoramos. A profundidade de “A puta” é a nossa própria. Cu é cu. Merda é merda.

 E, no entanto: como é pungente quando a merda é merda, e não algo que está para além da escatologia; como é dolorido quando foder é foder, e não uma “interpretação” (literalmente: uma escavação – foder significa cavar) do sexo; como é metafísico, como é ontológico quando a dor é palpável, quando a ausência é o que não podemos tocar, quando o desamparo não é diante do tempo, ou do insondável, ou do inescrutável, mas diante de nós mesmos, tão somente, diante de nós, bichos, do sol, da chuva, da pedra, da lama; como é difícil esta poesia que de tanto ser negada nos assalta, nos abalroa, e, sem favor, como é linda e profunda: o final de “A puta” é, como o início, um dos mais belos que conheço na literatura brasileira. Vamos lê-lo, minha gente, vamos nos entregar a nós mesmos, mergulhar para fora de nós, para nossa renegada superfície.


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