quinta-feira, 19 de maio de 2016
‘A Puta’, livro de Marcia Barbieri, é o melhor objeto artístico de 2015 por Arnaldo Afonso para o blog do Estadão
E atenção: num magnífico esforço de jornalismo investigativo, consegui em primeira mão o resultado do ‘Grande Prêmio Arnaldo Afonso’ de melhor objeto artístico de 2015 (nessa nossa seara dos saraus). Computados todos os (meus) votos secretos, o livro ‘A Puta’ (não se engane com o título: é altíssima literatura!), da escritoraMarcia Barbieri, foi declarado vencedor de forma incontestável. Parabéns a todos e palmas pra ela que ela merece. Continue a leitura http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/sarau-luau-e-o-escambau/a-puta-livro-de-marcia-barbieri-e-o-melhor-objeto-artistico-de-2015/
Notas de "A Puta" por Edson Coelho
"Sim.
Foi isso. Eu vi a vértebra de Deus. O pôr do sol penetrando entre os discos da
sua coluna. A hérnia saltou e pulsou dentro da minha vagina. Era o início da
degeneração do criador." Esta abertura é uma das mais belas que conheço na
literatura brasileira, entre obras de prosa e poesia. Com efeito, “A puta”, de
Márcia Barbieri, é um dos mais festejados romances lançados em 2015 e, no
entanto, é um poema. Não por conter alguns dos mais belos versos (ou frases)
que entre nós se escreveram nos últimos anos, ou cintilar em passagens em que,
se diz, a prosa vira poesia, mas por, o tempo inteiro, transcorrer no
território das revelações, das emoções explosivas e imprevistas, de instantes
em que o mundo parece se mostrar (desvelar) pela primeira vez. Do jeito que
“Cem anos de solidão” é um poema, em que os Buendía são mitos de uma
(re)descoberta da América Latina. Acontece que a “A puta” é um poema por ser um
antipoema, uma antimitologia; o grande mito aqui é o corpo, o desejo; tanto
tergiversamos, tanto evitamos, encobrimos, fugimos, negamos, que Márcia
Barbieri precisou nos dizer o óbvio: que cu é cu, boceta é boceta, merda é
merda, pica é pica, foder é foder e assim por diante. Com esta crueza, claro.
Em várias passagens, Márcia, ou, por outra, a
personagem-título, em primeira pessoa, nos lembra que não pretende ser
profunda, ou sutil, ou metafórica, ou simbólica. Não apenas não pretende ser,
mas nega a existência de tais profundidades. E, no entanto, os grandes amores
de nossa personagem são um poeta e um filósofo. Ora, ora. O primeiro morre ao
concluir sua grande obra e a Puta se estarrece ao ler-lhe as infinitas páginas.
Relê. Inacreditável. Centenas e centenas de páginas contendo apenas a expressão
“ohum”. Ele estava magro, acabado mesmo. “A obra pesava mais que o autor.” Ao
“preparar” o corpo, ela se toma de desejo, e fode com o cadáver. Alivia-se,
assume-se. Des’realiza-se.
O aborto, inclusive para nós, que defendemos o
direito a ele, é uma das maiores violências que uma mulher pode cometer contra
si mesma. É traumático física e emocionalmente, por questões biológicas,
éticas, espirituais, sociais. As páginas em que se dá uma tentativa de aborto
em “A puta” são diretamente geniais. O incômodo, o nojo, os sentimentos baixos,
desprezíveis, a indiferença que vira horror (no leitor) diante do lugar e do
ato em si são tão impactantes que o óbvio vira insólito, o carnal, a matéria
mais crua vira o insólito, a ausência absoluta de sentimentalismo vira um dos sentimentos
(um “inominável”) mais intensos que qualquer leitor pode experimentar. Durante
este paroxismo (o momento de eliminar a vida que gera), a personagem se toma de
desejo e fode com a aborteira. Alivia-se, sucumbida. Nada sutil, nada
simbólico, como se vê. E, no entanto, sutileza em avalanche, no(s) sentido(s)
em que vai gerando em nós sensações ao mesmo tempo conhecidas e imponderáveis,
até nos açodar, nos açambarcar, de forma inelutável, naquilo que nos queima a
flor da pele, mas negamos, e renegamos, não apenas por evitar atos e
sentimentos desprezíveis, mas por hipocrisia mesmo.
Eu li que Márcia foi indagada por muitos se o livro
é autobiográfico. É muita estultice achar-se entre tanta crueza imaginativa e
pensar que alguém viveu aquilo. E, no entanto, “A puta” é autobiográfico,
claro. Ela é o desejo. A puta é todos nós. (Falar nisso, o mais estarrecedor,
para mim, em “Cem anos de solidão”, não foi tanto a imaginação que “assombrou o
mundo” de García Márquez, mas o fato de que o livro é a história da família
dele, narrada de forma fantástica: é tudo “verdade”.)
“A puta” é um livro sobre o desejo, mas não sobre a
profundidade do desejo (como em “O império dos sentidos”, o filme de Nagisa
Oshima). É, na verdade, sobre a antiprofundidade. Não mergulha no desejo para
tocar o abstrato, o oculto, o espiritual; e, sim, chafurda no desejo, no corpo,
na alma, para “revelar” (literalmente: velar de novo, novos sentidos nos
sentidos; ausência de espiritualização – e, no entanto, espiritualização,
revelação, “mistério”) a própria carne, as mucosas, a pele, as feridas, as
fraquezas, a ausência de sentido da existência, estas coisas básicas, rasas,
evidentes, que, de tanto saber, ignoramos. A profundidade de “A puta” é a nossa
própria. Cu é cu. Merda é merda.
E, no
entanto: como é pungente quando a merda é merda, e não algo que está para além
da escatologia; como é dolorido quando foder é foder, e não uma “interpretação”
(literalmente: uma escavação – foder significa cavar) do sexo; como é
metafísico, como é ontológico quando a dor é palpável, quando a ausência é o
que não podemos tocar, quando o desamparo não é diante do tempo, ou do
insondável, ou do inescrutável, mas diante de nós mesmos, tão somente, diante
de nós, bichos, do sol, da chuva, da pedra, da lama; como é difícil esta poesia
que de tanto ser negada nos assalta, nos abalroa, e, sem favor, como é linda e
profunda: o final de “A puta” é, como o início, um dos mais belos que conheço
na literatura brasileira. Vamos lê-lo, minha gente, vamos nos entregar a nós
mesmos, mergulhar para fora de nós, para nossa renegada superfície.
quinta-feira, 9 de outubro de 2014
Resenha do "Mosaico de Rancores" no blog da Nova Alexandria
Resenha escrita pelo talentoso Éder Lima:
Quem quiser conferir, é só seguir o link: http://blognovaalexandria.blogspot.com.br/2014/08/pequenas-impressoes-sobre-mosaico-de.html
Quem quiser conferir, é só seguir o link: http://blognovaalexandria.blogspot.com.br/2014/08/pequenas-impressoes-sobre-mosaico-de.html
Raias Poéticas - V.N. de Famalicão - Portugal
Participo desse grande evento em Portugal de arte e pensamento, sob a curadoria do poeta Luís Serguilha.
Antologia de poemas - Hiperconexões Realidade expandida vol. 2 e lançamento
Participo dessa antologia de poemas (vol.2) organizada pelo grande Luiz Bras. O lançamento será dia 18 de outubro no Hussardos.
Desassossego - antologia organizada por Luiz Ruffato
Participo dessa antologia, organizada pelo grande Luiz Ruffato, com o conto "Medula", publicado originalmente pela Revista Pessoa.
sábado, 31 de maio de 2014
Resenha do "Mosaico de rancores" por Eduardo Sabino no Balaio de notícias
Resenha do "Mosaico de rancores" por Eduardo Sabino no site Balaio de notícias:
Prosa em fúria poética
Em Mosaico de Rancores, o estilo está lá, mais barbieriano do que nunca: a prosa poética forte, densa e peculiar. Agora, porém, os capítulos, que poderiam, pela força e o acabamento linguístico que têm, ser vistos como peças independentes, precisam funcionar em prol de um todo. Estão em busca de um projeto maior: a abrangência e a coesão de um romance.
Interessante notar como o texto de Márcia, agora imerso na estrutura do romance, dialoga com os aspectos mais comuns dessa narrativa, reiventado-os a seu modo. Mosaico de rancores não abre mão, por exemplo, das figuras de referência do romance: os personagens. E mesmo que a linguagem às vezes pareça um fim em si mesmo, ela também caracteriza as pessoas do texto e vai expandindo seus conflitos. Como em todo bom romance, não sabemos exatamente para onde a leitura nos leva, mas há um mosaico sendo composto, capítulo a capítulo.
Subjetividade exposta
Normalmente, em boa parte dos romances contemporâneos, o enredo é a parte mais visível. As ações dos personagens estão claras, a história se desenrola e, aos poucos, os traços mais subjetivos dos personagens vão sendo colocados, de maneira sutil ou direta, a depender do autor. Mosaico de Rancores inverte essa lógica.
O foco está, desde o início, no universo subjetivo da estilista Maria Luiza, ou, simplesmente, Malu. O texto está bem próximo da personagem, no centro de uma consciência lírica e atormentada. O tempo ali parece quase suspenso, cristalizado numa linguagem na qual Malu, a voz narradora, funde lembranças, traumas, desejos e obsessões. O enredo é justamente o que vai se desenhando aos poucos, sempre pelas frestas da cabeça de Malu. Os acontecimentos alimentam o seu grande conflito interior: o ciúme que sente pelo marido Lúcio.
Na narração de Malu, algumas palavras vão e voltam, e servem como chaves para abrir as portas de sua percepção de mundo. Os “vermes”, a “carne morta”, “as moscas”, “flores e frutas aprodrecidas” e um rio verde, no quintal da infância, transcorrendo nos finais de cada capítulo. Como no simbolismo, algumas imagens se repetem, especialmente as imagens de morte, sempre presentes. Mas, se no caso de poetas como Cruz e Souza a morte representa a libertação, a emancipação de uma condição de sofrimento, no texto de Márcia ela aparece quase sempre como uma barreira para o desejo. Uma pedra que bate contra uma consciência que se projeta para o infinito.
Nada diverso, nem fora, nem dentro de mim. Orgasmos nascem e morrem entre os meus dedos. - pág. 44.
Meu corpo são cavalos arredios e sem freios, são ladeiras esperando precipícios, suicidas à beira do abismo. Meu ventre inchado ferve e eu espero lavas. – pág. 59.
Ou, ainda:
A morte começa nos pés. Eu sei que sairei e metade da casa irá junto comigo, me entortando as costelas. Um caracol velho e sem asas.
O ciúme parece brotar da força do desejo de Malu. A vontade de retornar ao “rio verde do quintal”, uma imagem recorrente da infância e da pureza. O amor, para ela, surge como o maior de todos os desejos, algo que ela busca com desespero embora sinta como inalcançável:
O amor é assim, arrumação de camas, ruas sem saída, novelos de uma Ariadne perdida no labirinto. Não há barcas para atravessar o rio verde que invade meu quarto. – pág. 50.
O desejo pelo que Malu entende como amor acaba alimentando, na personagem, o monstro do ciúme. A todo tempo ela imagina Lúcio, o marido fotógrafo, com outras mulheres. Remói detalhes e indícios de traições que para ela são evidentes e escancarados. Aqui reside o grande conflito interno de Malu. Ela sabe que a paixão por Lúcio a está cegando. Parte de si tem consciência da cegueira, mas quer continuar investigando a própria caverna:
Escurece depressa. Apalpo as costelas e ainda percebo a fúria de Deus no meu corpo. A costela rejeitada. A cegueira não me poupou de enxergar minúcias. – pág. 73.
Ou, ainda:
Afundo no meu particular mito da caverna – cegueiras. O ciúme é inútil como águas-vivas sem vítimas.
A abrangência do mosaico
O romance navega no rio interior e furioso de um personagem que deseja completar-se no outro, unir-se a ele a qualquer custo. O mergulho de Malu se torna mais intenso na ausência de Lúcio, que viaja para participar de uma exposição. Ajuda a compor a riqueza da narradora uma intertextualidade constante com a pintura, o cinema, as artes plásticas, as mitologias grega e cristã.
Na parte II do livro, “Clareira”, Lúcio assume a narrativa, mostrando seu ponto de vista a respeito do relacionamento. Por ter uma visão menos subjetiva das coisas, Lúcio amplia o nosso conhecimento sobre Malu e os conflitos do casal.
O resultado é um romance bem-acabado e com uma harmonia incrível entre suas partes. Após a leitura, me lembrei, imediatamente, de um trecho do próprio livro, na página 38, que funciona também como metalinguagem, um exercício de reflexão da autora sobre o próprio texto:
Recolho como louca os retalhos da colcha que estou terminando. Todas as cores num só pedaço de tecido. Elenir sempre diz não entender como sou capaz de colocar essas cores em tão perfeita harmonia! Nem eu. Às vezes, imagino que são infinitos tons de cinza e, quando vejo, está pronto. Isso me comove.
A mim também.
Eduardo Sabino é escritor, autor do livro Ideias noturnas - sobre a grandeza dos dias (Editora Novo Século). Blog do autor: http://www.eduardosabino.com.
Publicado originalmente no site: http://www.balaiodenoticias.com.br/artigos-e-noticias-ler.php?codNoticia=291&codSecao=42&q=Prosa+em+f%FAria+po%E9tica
Livros
Prosa em fúria poética
Romance mergulha em psique apaixonada
Por Eduardo Sabino
Foto: Facebook da autora
Marcia Barbieri: poesia e metalinguagem
Acompanho há algum tempo a produção de Márcia Barbieri. Suas publicações em sites, revistas literárias e blogs. Desde o começo, chamou-me a atenção o caráter estilístico de seu texto. Uma escritora com voz reconhecível, fiel a si mesma na composição das frases, com escolhas vocabulares e saltos poéticos que se repetem no ponto de vista da técnica, mas sempre gerando novas imagens e experiências estéticas, lugares ousados e incomuns.Marcia Barbieri: poesia e metalinguagem
Em Mosaico de Rancores, o estilo está lá, mais barbieriano do que nunca: a prosa poética forte, densa e peculiar. Agora, porém, os capítulos, que poderiam, pela força e o acabamento linguístico que têm, ser vistos como peças independentes, precisam funcionar em prol de um todo. Estão em busca de um projeto maior: a abrangência e a coesão de um romance.
Interessante notar como o texto de Márcia, agora imerso na estrutura do romance, dialoga com os aspectos mais comuns dessa narrativa, reiventado-os a seu modo. Mosaico de rancores não abre mão, por exemplo, das figuras de referência do romance: os personagens. E mesmo que a linguagem às vezes pareça um fim em si mesmo, ela também caracteriza as pessoas do texto e vai expandindo seus conflitos. Como em todo bom romance, não sabemos exatamente para onde a leitura nos leva, mas há um mosaico sendo composto, capítulo a capítulo.
Subjetividade exposta
Normalmente, em boa parte dos romances contemporâneos, o enredo é a parte mais visível. As ações dos personagens estão claras, a história se desenrola e, aos poucos, os traços mais subjetivos dos personagens vão sendo colocados, de maneira sutil ou direta, a depender do autor. Mosaico de Rancores inverte essa lógica.
O foco está, desde o início, no universo subjetivo da estilista Maria Luiza, ou, simplesmente, Malu. O texto está bem próximo da personagem, no centro de uma consciência lírica e atormentada. O tempo ali parece quase suspenso, cristalizado numa linguagem na qual Malu, a voz narradora, funde lembranças, traumas, desejos e obsessões. O enredo é justamente o que vai se desenhando aos poucos, sempre pelas frestas da cabeça de Malu. Os acontecimentos alimentam o seu grande conflito interior: o ciúme que sente pelo marido Lúcio.
Na narração de Malu, algumas palavras vão e voltam, e servem como chaves para abrir as portas de sua percepção de mundo. Os “vermes”, a “carne morta”, “as moscas”, “flores e frutas aprodrecidas” e um rio verde, no quintal da infância, transcorrendo nos finais de cada capítulo. Como no simbolismo, algumas imagens se repetem, especialmente as imagens de morte, sempre presentes. Mas, se no caso de poetas como Cruz e Souza a morte representa a libertação, a emancipação de uma condição de sofrimento, no texto de Márcia ela aparece quase sempre como uma barreira para o desejo. Uma pedra que bate contra uma consciência que se projeta para o infinito.
Nada diverso, nem fora, nem dentro de mim. Orgasmos nascem e morrem entre os meus dedos. - pág. 44.
Meu corpo são cavalos arredios e sem freios, são ladeiras esperando precipícios, suicidas à beira do abismo. Meu ventre inchado ferve e eu espero lavas. – pág. 59.
Ou, ainda:
A morte começa nos pés. Eu sei que sairei e metade da casa irá junto comigo, me entortando as costelas. Um caracol velho e sem asas.
O ciúme parece brotar da força do desejo de Malu. A vontade de retornar ao “rio verde do quintal”, uma imagem recorrente da infância e da pureza. O amor, para ela, surge como o maior de todos os desejos, algo que ela busca com desespero embora sinta como inalcançável:
O amor é assim, arrumação de camas, ruas sem saída, novelos de uma Ariadne perdida no labirinto. Não há barcas para atravessar o rio verde que invade meu quarto. – pág. 50.
O desejo pelo que Malu entende como amor acaba alimentando, na personagem, o monstro do ciúme. A todo tempo ela imagina Lúcio, o marido fotógrafo, com outras mulheres. Remói detalhes e indícios de traições que para ela são evidentes e escancarados. Aqui reside o grande conflito interno de Malu. Ela sabe que a paixão por Lúcio a está cegando. Parte de si tem consciência da cegueira, mas quer continuar investigando a própria caverna:
Escurece depressa. Apalpo as costelas e ainda percebo a fúria de Deus no meu corpo. A costela rejeitada. A cegueira não me poupou de enxergar minúcias. – pág. 73.
Ou, ainda:
Afundo no meu particular mito da caverna – cegueiras. O ciúme é inútil como águas-vivas sem vítimas.
A abrangência do mosaico
O romance navega no rio interior e furioso de um personagem que deseja completar-se no outro, unir-se a ele a qualquer custo. O mergulho de Malu se torna mais intenso na ausência de Lúcio, que viaja para participar de uma exposição. Ajuda a compor a riqueza da narradora uma intertextualidade constante com a pintura, o cinema, as artes plásticas, as mitologias grega e cristã.
Na parte II do livro, “Clareira”, Lúcio assume a narrativa, mostrando seu ponto de vista a respeito do relacionamento. Por ter uma visão menos subjetiva das coisas, Lúcio amplia o nosso conhecimento sobre Malu e os conflitos do casal.
O resultado é um romance bem-acabado e com uma harmonia incrível entre suas partes. Após a leitura, me lembrei, imediatamente, de um trecho do próprio livro, na página 38, que funciona também como metalinguagem, um exercício de reflexão da autora sobre o próprio texto:
Recolho como louca os retalhos da colcha que estou terminando. Todas as cores num só pedaço de tecido. Elenir sempre diz não entender como sou capaz de colocar essas cores em tão perfeita harmonia! Nem eu. Às vezes, imagino que são infinitos tons de cinza e, quando vejo, está pronto. Isso me comove.
A mim também.
Eduardo Sabino é escritor, autor do livro Ideias noturnas - sobre a grandeza dos dias (Editora Novo Século). Blog do autor: http://www.eduardosabino.com.
Publicado originalmente no site: http://www.balaiodenoticias.com.br/artigos-e-noticias-ler.php?codNoticia=291&codSecao=42&q=Prosa+em+f%FAria+po%E9tica
Meu conto "Quando os maracujás florirem" na Revista Flaubert
Meu caro, não, meu querido, não, meu
esposo, não, meu companheiro, não, melhor poupar designações, tudo que nomeio
me compromete e não diz nada, talvez por isso as letras me interessem tanto,
sim, pela sua incrível ineficácia. Melhor eu começar assim, escrevendo assim,
do início, sem remetente, uma carta nunca deve ser lida por apenas um leitor,
uma carta tem segredos que dizem respeito a quase todos, pequenas banalidades e
deslizes que muitos cometem. Também não colocarei data, as coisas foram
acontecendo assim, ao longo de tantos anos que colocar um número exato daria
uma impressão errada dos acontecimentos e parecerá que um dia preciso nos
desentendemos e resolvemos desembaraçar e você sabe, não foi bem assim, as
tragédias acontecem um pouco a cada dia. Primeiro um hematoma perto da virilha,
um tombo pequeno, uma ralada no joelho, depois uma queda e um braço quebrado,
depois uma escada e uma fratura exposta, depois as varizes que estouram de
repente e inundam a sala de um sangue vermelho e grosso. Não, também não foi
assim, acho que primeiro foram os cachos, as uvas em cima da fruteira, sim,
aquelas brilhantes, feita de plástico. Não sei bem, nunca fui muito ligada a
métodos e números cardinais. Não, foi ainda antes disso, desde muito cedo me
apaixonei pelas parreiras e nem sei ao certo porque elas me causavam tal
encanto, eu poderia passar tardes inteiras olhando os caminhos que seus ramos
percorriam e ao anoitecer já não me recordava das trilhas e era necessário pela
manhã recomeçar meu trabalho de catalogação. O primeiro ramo a nascer se
estendia em direção ao telhado se furtando do compromisso de seguir o
estaleiro-quadrilátero que compomos quando trouxemos as minúsculas mudas. Essas
mudas não irão pra frente, veja estão tão fraquinhas, se eu fosse você eu
plantaria maracujás, você já viu como são bonitas as flores do maracujá¿ Ou
quem sabe aquelas margaridas miudinhas, eles dão em qualquer lugar. Sim, eu
compreendia e sim ele não era eu, de forma que se fosse, ele jamais plantaria
maracujás e se ele fosse eu ele saberia perfeitamente que eu não suporto os
maribondos que perseguem as florações e nem qualquer outro tipo de inseto
voador. Não, ele não era eu, caso fosse saberia que minha infância inteira eu
vi os maracujás penderem da cerca que separava minha casa da casa vizinha. Se
ele fosse eu ele saberia que não suportava lembrar a brutalidade que minha mãe
arrancava os frutos ainda verdes do pé para que a mulher da casa ao lado não
tocasse suas mãos sujas no fruto. Se ele fosse eu ele saberia que a única moça
que eu amei na vida morava na casa ao lado, sim ele saberia e sim ele não me
chamaria de lésbica quando conto essa história, não diria que no tempo dele
mulheres que amavam mulheres morriam solteiras, não ele não diria, ele não
diria que no bairro, ele e seus amigos comiam mulheres que gostavam de mulheres.
Sim, ele saberia que as mulheres se camuflam de homens muito melhores que os
homens. Ah, se ele fosse eu ele saberia perfeitamente que eu não me empenharia
em cuidar de flores miúdas que dão em qualquer matagal, que eu não me abaixaria,
não tocaria minha bunda na terra e não tiraria os capins que cobrem as flores
pequenas e se ele fosse eu ele saberia que eu só cuidaria em vida das
parreiras, só delas e de mais ninguém... Mas sim, ele nem passava perto do que
eu era e nas raras vezes em que pedi para que ele se colocasse no meu lugar,
ele se levantava do sofá e dizia que não ligava a mínima, e de baboseira e
pontos de vista e referência já bastavam as aulas de geografia e que elas
tinham ficado para trás faz tempo, se eu quisesse mesmo que ele se colocasse no
meu lugar que lhe arranjasse uma buceta, só assim saberia ser mulher e pensar
com a futilidade de uma mulher. Falava e espirrava pequenos jatos de água com a
boca. Então, eu tinha certeza, ele jamais seria capaz de ter uma buceta e
nessas horas eu tinha fé, Deus não teria colocado um buraco no meio das pernas
dos homens, não mesmo, até mesmo o cu duvido que seja coisa de Deus. Passei
muitas noites acordada pensando em uma maneira de me vingar, se tivéssemos
filhos poderia levá-los para longe e proibir suas visitas, mas ele nunca quis
ter filhos, dizia que a próxima geração era de pervertidos e ele não se
arriscaria, podíamos ter gatos e cachorros e uma tartaruga, se quisesse ser
mais exótica. Não, eu não era exótica, exceto as parreiras. Às vezes, durante a
noite, eu escutava sua barriga fazer barulhos terríveis e então, pensava, ele
podia ter uma úlcera incurável, no entanto, logo depois você arrotava alto e
dizia, puxei minha mãe, tenho estomago de avestruz, eu desanimava com minhas
pequenas vinganças invisíveis, não seria tão fácil te perder. Maquinava em
minha cabeça diversas formas de machucá-lo, fazer com que não voltasse mais,
enquanto isso, eu via cachos verdes em miniatura despencando da parreira, logo
as uvas poderiam ser colhidas, no começo do ano talvez. Uma noite escrevi uma
novela de duzentas páginas inspiradas em você, foi inútil, você dizia que
detestava literatura, era tudo uma balela e que aquelas páginas só serviriam
mesmo para limpar a bunda. Esquece, literatura não serve para nada mesmo, é
como disse, as letras me interessam pela sua ineficácia. Agora não haveria
erro, minha vingança não tinha como falhar, você não teria como escapar, você
estava preso no estaleiro-quadrilátero que compomos. Esqueci de perguntar ao
meu pai as pragas que atingem as parreiras, depois resolvo isso. Sim, o mais
importante agora era a minha vingança. Sim, o estaleiro parecia forte, sim,
você era bom com as construções. Cinquenta e dois quilos, sim, era um bom peso.
Como fazia todas as tardes, coloquei a cadeira embaixo e fiquei admirando os
ramos e agora também admirava o espetáculo dos primeiros frutos. Amarrei a
corda, subi na cadeira e depois o chute. Ainda sinto o cheiro das flores de
maracujá e o gosto do beijo de Estela e da surra e da briga eterna entre meus
pais e a vizinha-vadia-mãe-solteira que não sabia dar educação para filha, a
filha que tinha gostos exóticos. Sim, você tinha razão, devíamos ter escolhido
os maracujás ou as margaridas ordinárias. Não, não se preocupe, o capim não
está tão alto, peça um pouco de mata-mato para meu irmão, vamos você deveria
saber que os cachos demoram para crescer, sim, melhor eram as margaridas
ordinárias.
Pulicado originalmente na Revista Flaubert número 1: http://issuu.com/revistaflaubert/docs/flaubert
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014
Veredas - panorama do conto contemporâneo brasileiro (Eu & outros)
Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro é a afirmação da multiplicidade dos caminhos narrativos contemporâneos. O projeto baseia-se na ideia contrária a das últimas antologias lançadas no mercado: em vez de um pódio e de um elenco de melhores narradores — o que é exagerado em um país constituído de centenas de escritores, entre famosos e anônimos — decidimos optar por um levantamento das estratégias narrativas, em que seus escritores empenham-se em propor novos caminhos e soluções para a sua ficção. Veredas não é, e não quer ser, a palavra definitiva sobre o assunto, mas é o gesto mais adequado em uma proposição democrática, pretendendo um panorama cromaticamente mais rico da prosa brasileira.
Para adquirir siga o link
Para adquirir siga o link
sábado, 8 de fevereiro de 2014
O desencaixe do sol - poema da coletânea "Hiperconexões" organizada por Luiz Bras
Há milênios a pedra descansava embaixo do seu nariz
sem desgaste, sem musgo, sem vinco,
uma memória esquecediça
Mas Estela estava ocupada demais
desacoplandoseus membros
Desencaixava pacientemente peça por peça
Levantava e abaixava as pernas
Escutava atenta os ruídos da rótula
Escondia os olhos das luzes da tarde
Eu a observava da janela verde e seu corpo não passava
de uma carcaça adormecida pelo tempo
Ela repetia esse ritual todo domingo
O crânio era deixado em cima do ventre vazio
As bifurcações do cérebro eram confundidas
com os pensamentos
Ela continuava lindamente viva
Tentei alcançar sua mão, no entanto, eu era só um velho
Pelancas despencavam das minhas extremidades
E a carne de Estela não possuía nem riscos
nem linhas nem ranhuras
Sobre a cabeça de Estela repousavam nuvens,
Sobre a minha, pássaros moribundos de origami
Há milênios a pedra descansava embaixo do seu nariz,
Sem desgaste, sem musgo, sem vinco,
uma memória esquecediça
Estela sussurrava para seu crânio
Haverá um tempo em que a pedra será irmã do homem
E toda substância disputará um sol sobre a mesma pele
E eu gaguejo para Ninguém:
Não creio na onipotência da pedra
não creio em neutrinos
não creio em quarks
não creio no bóson de Higgs
não creio na nanomemória das coisas
E ainda assim a existência enferruja
igual a um parafuso espanado.
Assinar:
Postagens (Atom)