sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Mosaico de Rancores: capítulo 4



A noite ele chega. Ele sempre chega à noite ou ao meio-dia. É um homem de extremos, logo ele, quem diria, que vive repetindo: "nem tanto o mar, nem tanto a terra, minha querida!". Vive velejando como turista num mar verde e calmo, enquanto eu, com tantas traves atrapalhando meus olhos, estou perdida numa ilha. Solitária como uma ilha, sem nenhum naúfrago para me consolar. Muitos olhos me acompanham, seguem meus passos, riem dos meus tropeços - já não posso evitá-los. A desgraça alheia é indolor, não fede, não cheira.

Cozinho um ovo. Gosto de sentir minha mão deslizando sobre a clara macia. Lembra o rosto da minha irmã. Se o destino não a tivesse traído! Ele apunhá-la a todos pelas costas e nos seus dias de perversidade crava a faca no meio do nosso peito, olhando fundo para nossa falta de alma.

Ele vem calado, como se tivesse engolido um sapo que ainda não foi digerido. Tento ficar quieta, só Deus sabe o quanto o silêncio me custa. A qualquer hora ele pode vomitar barbaridades em cima de mim. Respiro fundo, engulo saliva e palavras. Enormes moscas azuis rondam sua boca, ele as repele sem perceber. Aquela velha continua falando feito uma maritaca. Às vezes, eu preferiria ser surda, mas quedas d'água invadem minha cabeça. Chuva e lama afogam os últimos mortos que repousam no rio verde e calmo que nasce toda tarde no meu antigo quintal.

2 comentários:

Letícia disse...

E os quintais sempre têm vida. E a desgraça alheia é engraçada. Por mais que a gente finja, alguém sempre acha graça. Gosto desse tema que você usa. O silêncio de quem quer só viver - quase morta. E já reparou que sempre criamos um homem seguro de si? Sempre criamos esse ser. Somos meio como Deus em seu processo de criação. Em nosso processo, sempre surge esse homem que diz tudo em uma frase só.

E a vida não vale um conto é um mosaico de significados.

Bjs.

Germano Viana Xavier disse...

É tanto barulho dentro de quem sente tanto assim, que querer o silêncio é um dos mais altos sonhos. Não se consegue, e a filosofia explode em palavrões ou secos olhares.

O silêncio é um sonho pra quem sente demais. Um sonho impossível.

Abraços, Márcia.
"Alice", te amo.
Continuemos...

Cádor