quarta-feira, 16 de março de 2011

Morte no Subúrbio: conto em 6 atos


Ato 1

Depois de três meses adiando, começo a réplica de Lucien Freud. Gosto de pintar durante a noite, as sombras deformam os objetos. Homem nu com um rato na mão. Essa tela me excita. Corpo sonolento, membro descansado. Vertigens. Mil coitos interrompidos. Espermas engarrafados. Água rasa. O rato estrangulado entre os dedos. Abro o zíper. Pau duro. Vejo a polpa branca das jabuticabas percorrendo e saciando o desejo do tronco. Encosto a ponta da língua. Amargo. Porra e vermelho carne escorrem pelos meus punhos em apuros.

Ato 2

Ela me convidou para sair. Éramos confidentes, embora apenas ela falasse por horas, não conhecia sobre nenhum assunto, no entanto, palpitava sobre todos. Era evidente, todo dia me devorava com o olho obsceno da bunda. Fingia não ver, todos viam, não tive como fugir, dissimulei interesse. Ninguém aceita que um homem não coma uma mulher e toda mulher sonha ser bem comida pelo macho que ela escolhe. Em casa, minha mãe perambula pelos cômodos, quer saber se voltarei para dormir. Talvez. Os corpos se saciam rapidamente, apenas o amor tem esse inconveniente de partilhar camas e noites. Tripas de anjos e meninos.

Ato 3

Enfio minha língua em seus lábios. Remexo por dentro dela. Tudo tão diverso. Não me contento. Há sinos repicando em seu útero fértil de puta sagrada. Todos os meus íntimos relógios – anti-horário. Desprezo seus seios, anseio materno. Coloco-a de quatro com força. Volto à infância. Sangue coagulado nos meus joelhos. Muro coberto de cacos de vidro. Os vitrais assumem os mais diversos disfarces. Caio trepando nas árvores. Esfíncter. Quintal de sonhos e merda. Levo-a para casa. Vejo uma triste ternura cambaleando em seus cílios.

Ato 4

Algo me dizia que ele sentia o mesmo que eu. A mesma dor, a mesma vontade de entrega. Quando estávamos perto Ele suava como um animal que traz do nascimento o aniquilamento inevitável da morte. Touros se debatendo nos matadouros. Caio. Não podia mais me enganar, era evidente, desde a primeira vez que o vi. Um anjo barroco do subúrbio. Eu precisava saber. Eu tinha que escutar da boca dele. E escutei: “Você tá louco porra, eu sou homem!!!! Gosto de mulher, sai pra lá bicha du caralho!”. O desafeto é monstruoso. Um peixe engolindo – estuprando o mar. Ventríloquos mudos.

Ato 5

Minha maior tortura foi confessar meus crimes aos pés encardidos do seu ouvido. Olhos de cão em agonia. Babas de raiva - hidrofobia. Não posso mais fingir, omitir o que sou para agradar os delírios de perfeição dos outros. Eu sinto tesão por homens. Reprimi por muito tempo essa vontade quase inata. Não dá mais. Eu me iludi com o Caio, mas isso não muda quase nada. Não altera muita coisa. Vou para o Bar da Lôca e faço muito sexo, sem falsos pudores, como sempre sonhei, sem mutilações. Enquanto como outros homens, penso no Caio. O amor é andrógino, um mar povoado de cavalos marinhos. Suas mãos, seus cascos, um resto de sol, cavalgam no meu sexo. Lembro-me o quanto era difícil espantar as moscas que se distraíam ao redor dos seus olhos de cavalo.

Ato 6

Não posso mais morar aqui. Vou embora. A penumbra agora ocupa o espaço vazio do quarto. A pouca luz que entra pela veneziana escapa pelo buraco da fechadura. Não há grande diferença entre jaulas e janelas. Iago. Iago. Repito exaustivamente até formar um nó cego na garganta. Espero o eco devolver uma imagem sinuosa de mim mesmo. A mala, as frutas esmagadas, o cachorro enterrando ossos. Os olhos da jabuticabeira encravados na minha carne gasta. Pego uma tela. Natureza morta. Hoje eu sei: a saudade é uma morte camuflada e morremos todos os dias na gordura solitária do ralo.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Placenta


“Onde é o vasto ventre do nada, prenhe de mundos, que contém agora as raças que virão?”

Arthur Schopenhauer

Enquanto a despia com a alma de viajante, pensava em “Cão Danado”. Se o revólver não tivesse sido roubado. Se ela não tivesse casado com aquele homem rude, se não tivesse parido por tantos anos, tantos filhos brutos rasgando suas entranhas de falsa mulher civilizada... Soluçava e sentia o gosto das goiabas que compartilhávamos quando crianças e com o tempo foi bichando. O esfíncter arrombado da nossa infância prematura.

- Você está diferente, parece que a rudeza te comeu por dentro e por fora, de pensar que já fomos tão parecidas, as pessoas até costumavam confundir.

- Você julga não ter mudado.

- E mudei?

- Minha querida! Não seja tão tonta, eu não envelheci assim, tão de repente, tão sozinha, já faz tantos anos...

- Tantos anos?! Não foram tantos assim.

- Eu apenas parei com essa luta insana contra o tempo. Agora eu comungo com ele, todas as manhãs.

- Uma forma bem cômoda de encarar essa flacidez mórbida estampada em você, toda essa pele manchada de mágoa tropeçando entre seus dedos.

- É triste ver você.

- Que ironia! Digo o mesmo.

- Eu te amo, não há nenhuma ironia em minha voz, não desperdice suas forças comigo, estou ao seu lado, como quando pela manhã nos surpreendíamos porque tínhamos sonhado o mesmo sonho.

- Já não me lembrava.

- Você ainda não percebeu que mudou. Um vestido que nunca foi usado, não significa que não envelheceu.

Suas palavras afundaram como pedras, pungentes como a saudade de um morto. Corri, andei em direção ao quarto. Entrei, fui até o espelho, tirei toda a roupa, peça por peça. Era triste, mas era verdade. Senti-me ridícula. Tentando capturar a juventude a fórceps. Os seios minúsculos e murchos não se acomodavam em minhas mãos inescrupulosas e duras, a artrite já tinha corroído minhas articulações. A rosa tatuada também murchara e jamais seria colhida. No ventre, as trilhas eram profundas e de um perolado fosco. Todos os espermas que, por vaidade, matei estavam ali, vivíssimos, rindo da minha antiga polidez. Tentei bisbilhotar por dentro de mim à procura de consolo. Inviável. Estava morta. No lugar das enguias, tripas secas. Retirei os dedos. Agora uma vagina era apenas uma vagina. Uma matéria escura. E eu estava mijando para o universo. Olho para o chão, alguns tacos estão soltos. Tanto tempo passou e tudo que eu queria era anoitecer e poder ver a Ursa Maior se eternizando na brancura do teto.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Marcio Almeida



A MINIFICÇÃO DO BRASIL, DE MÁRCIO ALMEIDA. OS INTERESSADOS FAVOR ACESSAR:http://www.clubedeautores.com.br/search?what=marcio+almeida&commit

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Sangria nos meus olhos mortos



“O homem é um deus em ruínas”
Ralph Waldo Emerson

Começo o árduo trabalho de ensacar os figos. Olho a árvore e vejo a mão desproporcional de Deus brotando e descansando sobre a terra arada.

É outono e as folhas se desmancham sobre o chão caiado. A mulher de vértebras em andrajos murmura entre as frestas pretas de seus dentes fatigados: Perante o amor todo ser se desnuda.

Marimbondos rondam o quintal e suas asas negras assustam os olhos planetários da minha infância esquecida. Os pés descalços esmagam a terra num misto incoerente de inocência e maldade. Minúsculas formigas deslizam sobre o tronco cinza, se encontram, se beijam e se abandonam. A simplicidade me apavora.

- Você sabia que as larvas entram no figo, comem-no por dentro e morrem sem poder escapar da própria armadilha? Bonito isso, né?

- Existem tantos homens que são como essas larvas... Invadem nossas entranhas, alimentam-se de nossas vísceras e morrem dentro de nós, devorados pela mesma fúria que os impeliu a entrar.

Aperto a polpa tenra.

No início o gosto não me agradava, mas acabei por apreciar o ritual de abrir a fruta e degustar seus desenhos. Me passava pela cabeça todas as teorias matemáticas tentando provar a inexistência do obtuso. O retorno provável-trágico da vida.

Mordo a flor.

Um velho alto e magro, cuja pele insistia em acariciar o mistério, rezava todas as tardes pelos fetos não vingados. Eu dizia amém, esquecida das mortes fecundas do meu útero. Um sol vermelho sai e faz um escarcéu sob minha vagina de puta cansada. Minha carne despenca dia após dia dos ossos e almeja se esconder na solidão omissa de ancestrais porões brancos. Nostalgia da época em que fui criatura insignificante e era possível estrangular o tempo. Despejar toda areia sobre o ar. Enquanto homens e janelas verdes contemplavam passivos todo suicídio.

Vivo só. Durante as chuvas anoiteço as vistas e sonho com o espetáculo raro das touradas. O corpo da mulher nasceu deformado para o afeto e para a fratura exposta. É apenas uma caixa vazia de paixões frustradas. A autopiedade fez ninho nos meus olhos mortos. Ocos. O amor se extingue entre as podas drásticas e o descaso das madrugadas. Meu coração é um punho fechado. Abril? Não é tempo de figos.

sábado, 4 de setembro de 2010

CAVALOS MORTOS


“Não ponha o sol sobre vosso ressentimento”
Ef 4, 26b

Fechei devagar minhas pálpebras caídas - inveja de todo peixe, e mais uma vez vi um campo fértil, embora solitário. Desde muito cedo aprendi a observar e em todas as faces eu encontrava minúsculas moscas brancas, criadas entre os carvalhos da ignorância humana. Contemplei o medo nos olhos de vidros dos corvos que testemunharam a morte de Van Gogh.
Sentei nu de frente para o horizonte antes da aurora e fiquei imaginando qual seria o gosto daquelas papoulas encarnadas, nascidas tão à margem dos cavalos mortos.

O dia está quente, não tiro a blusa, remexo os bolsos da calça, mas esqueci o que procurava, tento avançar, não é possível, creio que nenhum um homem pode avançar. Somos cães loucos rosnando para o próprio rabo, escorpiões ferroando as próprias cabeças, experimentando a eficácia de seu veneno. E os velhos são como caranguejos, andam para trás e alimentam-se dos defuntos da memória. Sempre veem multidão na solidão oca das coisas.
A velhice exala o odor do estrume – fetos prematuros nascidos da imensidão dos dias. Não se iluda, o tempo não tem aliados, é um sádico nos arrancando, pacientemente, vértebra por vértebra, recordando a falência dos nossos instantes. Ele me fez tão mesquinho, que agora sou um verme roçando a carne verde e indigesta dos cavalos mortos. Cavalgando com serenidade, todas as manhãs (meus cadáveres), esses animais selvagens que já não precisam de selas. Cascos trotando na reminiscência cíclica dos vitrais.

- Você pode me dar uma chance?
- E quantas mais?
- Eu juro que dessa vez eu farei tudo diferente, eu te provarei que posso ser quem nunca fui.
- E o que eu ganho acreditando?
- Amor em dobro, como na música.
- Estou cansada de servir de tema pra suas metáforas inúteis, é um jogo sórdido, machucar em nome da arte.
- Não, não é um jogo, eu errei, foi só isso, todo mundo erra. Porra!!!! Eu sou humano.
- Tenho percebido. Só que eu não sou tão madura para compreender essa separação entre corpo e alma, afinal, será que realmente o coração é uma casa de putas com mil janelas como disse Gabriel Garcia Márquez?
- Só o tempo te mostrará que mudei.
- Tudo bem, eu aceito esperar... Tenho pouca coisa a perder...
- Eu te amo, eu vou te provar, você não vai se arrepender, eu serei o melhor homem, daqui a cinquenta anos, você se lembrará disso e pensará, enfim, valeu à pena acreditar.
- ...

Nossos homicídios premeditados não renderam grandes prisões. Como disse antes, o tempo é sarcástico, um verdadeiro gozador. Minhas traições ainda estão sendo tragadas, lentamente, feito um cigarro eterno de infelicidades. Enfisemas espalham-se por todo meu corpo. Um vagalume apagado perdido nas noites escuras. Lembro-me agora do verso de Lorca: “a morte botou ovos na ferida”. Espalho o amarelo sujo dos caracóis surgidos de gozos infecundos.
Não foi possível provar nada, não sei se mudei. Também não acredito que fantasmas presenciam nossas condutas. Há trinta anos questionaram-me o motivo de eu não jogar terra em você. E hoje eu sei responder. Afinal, como eu poderia jogar terra perante sua eternidade, se antes já roubara e regurgitara teus sonhos?

Acabo de lembrar o que procurava no bolso, era sua foto três por quatro, desenhei ano a ano as rugas que teria, assim sinto que envelheceu junto comigo.
A manhã parece fria. Volto para nossa casa, ela ainda tem a mesma cor, as nuances do sol do Mediterrâneo. Na minha boca, o gosto amargo dos cavalos mortos...


Conto publicado na Revista Caos e Letras

segunda-feira, 5 de julho de 2010


Côncavo

Cólera nos meus olhos pequenos de passarinho morto
O pior chute é aquele que vem da inocência cortante das palavras
(a ainda menina e sua vulva violentada entre as coxas)
É preciso velar pelas bocas costuradas
Gosto de pintar homens sem faces
Subjugados pela insensatez dos ponteiros e de outros homens
- essa nossa vida anti-horário
A nos comer pelos pés.

Hoje as paredes caiadas discorrem mais a meu respeito
Do que cien años de soledad ao seu lado
De todo nosso amor anárquico
Restam-me ridículos pontos de luz furtados
Escapando rotos pelas venezianas trancadas
Agora seus gozos mancham outros úteros
Suas mãos convulsivas já não me dividem ao meio
Como a mim mesma – autoflagelo.

Contudo, alimento os escorpiões encalacrados das madrugadas.

sábado, 5 de junho de 2010

A matança

“Contradigo a mim mesmo porque sou vasto”
Walt Whitman

Toda manhã tem uma cor leitosa. Desespero. Apesar das buzinas, sou despertado por grunhidos de porcos. O tempo é uma puta despencando filhos de sua vulva raivosa.

O assassino calcula friamente as características de sua vítima. O escolhido observa com olhos humanos e imundos. Seu corpo é devidamente raspado. Do lado de fora, barulho e cachaça. Fugas inúteis no terreiro. Todo quintal termina num abismo. Há uma luta crua entre a pedra e o fio da navalha. Não há rituais, a faca desliza pela carne gorda e branca. Salve o pouco de alma que resta em mim, porque ainda guardo com ternura as noites escuras de menino mau.

Sinto os olhos dele cravados nas minhas vértebras podres. Vastos e piedosos como os olhos dos porcos antes do esquartejamento. A sua bondade sempre me custou caro. Ser pai é viver ruminando a solidão das dores clonadas. A beleza torturante das cerejeiras em flor. Era o que ele dizia. Também costumava crer que a chuva era capaz de vencer as badaladas incessantes de Deus. No fim das contas, as pequenas coisas acabavam por diluir as grandes, como numa regra de infinitas compensações.

Depois da presa debater-se em vão, um corte preciso perfura sua jugular. Lama e sangue espalham-se pelos pés do oponente. O animal continua vivo. Ao redor da mesa, os homens bebem, apenas meu pai mostra-se comovido: “Para com isso, sua pena prolonga a dor do animal!”. No almoço, recusa a carne morta.

Raspado e pendurado. Pago caro pelos meus erros, todos os dias revivo meus homicídios, apunhalo os mesmos inimigos. Ressuscitados a cada amanhecer. Fui coberto como os animais. Aquela baba branca e gosmenta continua despencando das minhas ancas: Las babas del diablo. E no final tudo que me lembro é dos seus olhos de gado penetrando a cela, perversamente generosos, esperando pacientemente para recusar minhas vísceras que serão servidas a pouco.

texto publicado originalmente No Caos e Letras e Cronópios

quinta-feira, 15 de abril de 2010

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Mosaico de Rancores: capítulo 42


Tenho você dentro do meu corpo, dividindo-me ao meio. Kama sutra. Tê-lo comigo não impede que uma legião invada nossos lençóis. O amor é traiçoeiro e traz restos de outras carnes, gosto de outras almas, salivas espessas de outras bocas, cascos galopantes de outras mãos. Rastros de lesmas. Perversos mosaicos. Decúbito ventral. Minhas costelas doem, contorcem-se e me pergunto de que homem fui subtraída - numa intenção tola de ser multiplicada. O amor é um salto mortal, um tripé pronto para estripar. Um ódio ralo e verde percorre minha espinha. Mantenho-me viva, alimentando as suas sanguessugas. Simbioses??????? Lúcido. Os olhos negros das fechaduras me vigiam. Retiro os pontos dos cortes dos últimos dias. Nenhum crepúsculo me salvou desse translúcido oscilante, oco e homicida, que desmonta vértebras, rompe vísceras, como num quadro alucinado de Grünewald. Meus seios te observam, enquanto um rio branco surge de seu púbis. O mar de ressaca despenca sobre nossos corpos exaustos. Lírios da paz.

sábado, 3 de abril de 2010

sábado, 6 de março de 2010

Campos ceifados


“Não há falta na ausência. / A ausência é um estar em mim. / E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços (...)”.
Carlos Drummond de Andrade

O rio é um mar pequeno, infinito e tenebroso. Cavalos marinhos devorando submarinos de todas as cores e mastigando cadáveres frescos. Carvalhos sentimentais. Cardumes de olhos me olham. Espiões. Peixes esperando serem fisgados.

Relembrar é estranho... É viver duplamente o que deveria ser subtraído da memória. Reencarnações. Engulo estranhas pílulas brancas. Não se compra a paz. A sanidade num frasco de vidro. Medley. Duzentos anos para decompor. Tarja preta.
O divã é um culto intelectual às emoções mortas. Lazaro e suas roupas em farrapos.
- O que você está sentindo?
Moscas mortas. É o que eu vejo toda vez que fecho os olhos. O perolado das moscas mortas. Varejeiras.
- Conte mais. O que mais você vê?
Redes resgatando enguias. Cristo mergulhado em ódio e silêncio. Sinestesias. Mantos revestindo pedras. Sanguessugas cobrindo meu corpo.
- E a sua infância? Qual o cheiro da sua infância?
Vísceras frescas. Leitos. Vidas submersas. Chuvas e escombros de janeiro. Velas queimando sobre carne. Diálogos escorregando entre os vãos obscuro da portas.
- E a morte? Você tem medo da morte?
Não. Penso na morte como números cabalísticos. Inevitável. Roda da fortuna.
- A morte não te surpreende?
A morte, algumas vezes, não é surpreendente. Não chega feito um batedor de carteiras. Vem mansa e certa, como a correnteza... Como uivos em noite de lua plena. Como o suicídio previsível dos desesperados.
- E a sua mãe, gostaria de falar dela?
A minha mãe estava na beira do rio comigo no colo, não me recordo nitidamente, acho que meu irmão brincava um pouco mais distante, aí então...
- pode continuar.
... foi então que ela perdeu os sentidos, a vida perdeu o sentido. Eu puxei-a pelos cabelos e gritei, gritei, gritei, mas a correnteza foi levando, levando... Ainda sinto seus cabelos escorregando entre meus dedos finos e enrugados, sua vida se tornando fluida e transparente.

Era um aquário, depois virou rio, depois virou mar.
- E o mar?
O mar é apenas um rio grande, infinito e tenebroso. Tão somente... Campos ceifados.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

As mãos mirradas de Deus


“Deus tem também seu inferno, seu amor pelos homens”
F.W. Nietzsche

A infância me traz um terço de contas inumeráveis, escorregando entre as membranas dos meus dedos, embora muitos desacreditem que exista algo entre um dedo e outro, além de minúsculos abismos. Sou um anfíbio me alimentando de rochas e lavas frias.
Ainda sonho com aquele homem bizarro, do cheiro rude da velhice desprendendo devagar da sua pele cinza, o tempo transforma a carne tenra num laboratório de horrores. O homem grande das mãos mirradas... Olhava e não compreendia os desígnios de Deus. A geometria torta a conceber desejos gordos para concretudes magras. A menor distância de um ponto ao outro é uma curva. Suas mãos finas e pequenas sustentavam um neto corado e robusto. As dualidades são sempre bárbaras... Naquela época as crianças me traziam um sentimento ruim, um ódio inexplicável, em forma de espinhos, sabe aqueles espinhos que vivem entrando em nosso pé e precisam ser retirados com agulha fina? É, era um incomodo assim. Mesmo hoje não as quero bem, há uma rivalidade muda entre nós. Guerra fria. E toda vez que vejo uma, acho suas cabeças grandes, vazias e desproporcionais, como grandes campos minados. Strawberry Fields Forever. Tento despistar a curiosidade insana dos meus olhos, mas eles sempre acabam nas extremidades. Então, novamente tenho diante de mim, o homem das mãos mirradas... Alguém me grita:
- Lembra de mim?
Observo profundamente aqueles olhos azuis e tenho certeza que eles já fizeram parte do meu mundo. Mas onde, quando, em que circunstâncias? Aqueles olhos de um azul raro não pareciam pertencer aquele rosto: delicado, anguloso e tão perversamente angelical.
- Olha bem pra mim. E aí?
Pensei que ela bem poderia ser protagonista de um daqueles filmes antigos, preto e branco, nos quais todas as mulheres eram anjos intocáveis. Andróginos. E seus olhos... Tão fora de órbita, flutuando num universo há muito esquecido.
- É impossível que não se lembre! O Juninho, meu irmão e você...
Como poderia me esquecer? O meu primeiro amigo. Os olhos, era isso, eram os mesmos.
- Claro, como ele está?
- É uma longa história...Triste história.
Não ousei perguntar.Não queria saber. Eu sei muito bem viver de lembranças... E elas eram muitas e boas. Amávamos como dois seres antes da criação, antes do bem e do mal.
Reflito e minha imagem é um quadro alucinado de Edward Munch. Sigo a fome, abro cada curva do meu intestino e ele dá voltas e voltas em torno de mim, como uma roda da fortuna girando sobre o próprio eixo. No jardim crescem os baobás, se espremendo numa realidade limitada, num tempo oco, sem espaço.
Rumino mitologias, o homem grávido. Também gravitam seres no meu ventre, na contradição plena do meu membro ereto, masturbam-me, as mãos diabolicamente mirradas de Deus...

domingo, 6 de dezembro de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 41

Todos os dias rezo pela cegueira dos meus olhos vitrificados. Negro olhar implorando clemência. Coroa do Diabo. Cãos-guias me seguem e mostro-lhes com devoção a porta do Inferno. Porões. Telescópios descobrindo escuridões. Caminho até a cama e lá está você. Nu. Membros eretos. O espelho duplicando meus prazeres. Plenamente meu, ao alcance de todos os meus insanos desejos. Nirvana às avessas. Desejo e medo. A maçã repousa morta em minha boca. Um gosto de podridão amarga entre meus dentes. Enquanto polvos se enrolam em minhas pernas lívidas. Entregues. Refém da perversidade das minhas vontades, da tara das minhas mãos, da fúria do meu ventre quente, macio e úmido. Envolto em minhas vulvas de rancor desmedido. Violência e paixão. Caravanas e cachorros vadios percorrem minha pele. Ladro. Paralelepípedos balançam meus seios inóspitos. Caleidoscópios multiplicam minhas mãos e minhas línguas. Sinto a incoerência do seu corpo. Meus dentes te cravam e criam novos estigmas. Fisgadas. Cavalgo ideias e brota do meu púbis um mar de peixes vermelhos famintos. Descanso meus olhos nos antigos corais. Fósseis de um tempo que passou.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Mundo das ideias


Toda badalada nos fere, a última nos mata”
Provérbio latino-americano


Morrer é como pisar um rio pela primeira vez, nunca sabemos ao certo o que há no fundo.

Rua Aurora. Os jovens riem dos velhos, achando serem imunes à velhice, pensando que a adolescência jamais arrumará as malas e partirá sem recados, abrupta, como um mochileiro irresponsável. Eles falam em códigos e contam piadas até o amanhecer e para eles as noites são estreladas e não lembram em nada os suicídios e os ciprestes de Van Gogh e passam rápidas e o sol e o gozo nasce quente novamente todos os dias. Também acreditei nisso, bebi dessa fonte enganosa da eterna juventude. Hoje as moedas que joguei alimentam os desajustados.
Meus olhos eram flutuantes e verdes... Tão verdes e impressionantes como as lagartas antes das asas. Envelhecer era ter mais de dezoito. Os cavalos passam sempre a galopes... Famintos. Como não percebi antes? Ah, a eterna adolescência de Leminski...Aos quinze também era poeta, mas as palavras foram morrendo aos poucos, sufocadas por sondas e cateteres, algumas engolidas, outras despejadas em conchas azuis, na esperança tola de virarem pérolas, as coisas apodrecem mais rápido do que imaginamos. Olho a beleza furtiva no breve e absurdo afogamento dos corais. Comungo com a perversidade dos espelhos e com os labirintos em braille de Borges. Apenas suspeito da ingenuidade dos caracóis sempre envoltos em cascas duras, vendo a vida passar lambendo o chão e a merda de todo homem. O mundo visto pelo buraco omisso da fechadura. Regurgito: e a vida pode ser mais cruel que a morte. Afiem as facas!!!! Ela nos desossa como um açougueiro louco, contaminado pela frieza do ofício.
Rua Brinco de Princesa. Passo as mãos trêmulas pelos cabelos ralos. Olho através da janela, trespasso gerações. O moço de cabelos compridos e anarquista, agora anda de terno, com ares de pai, é gerente de uma multinacional. A moça, outrora sorridente, passa contando os rejuntes dos pisos, tão cúmplice da tortura do tempo, eu não fui o único a ser trapaceado... Sua mãe que desfilava distraidamente sem blusa com as cortinas abertas, agora guarda com vergonha os seios flácidos, e apenas seus decotes são vermelhos e vivos. E apenas eu sou seu voyeur e todas as janelas lembram o suspense de Hitchcock. Seu rosto tem o cheiro e as manchas próprias das frutas amadurecidas à força. O tempo é um cão cego e sem faro a nos guiar.
Rua das Ilusões. Vejo o mundo e posso ver a pena através dos seus vitrais embaçados. De tudo o que me restou a piedade é o sentimento maior de todos, Camille Claudel me entenderia, apesar da sua loucura e devassidão. Ninguém fica pra semente, escuto um coro rouco gritando. Espero sinceramente que não, porque a morte se instalou entre meus ossos e minha pele, ela é agora minha nova e digníssima carne.
Rua sem saída. Aqui, agora, percebo o relógio se arrastando num compasso tão diferente do meu, eu diria inversamente proporcional. Os relógios de bolso e os pêndulos não mais existem. Percebo o quanto envelheci, meu corpo já não responde aos meus comandos, já não posso correr disso tudo. E o moço me diz gravemente: “Você jamais teve minha idade!”. Sou escravo dessa visão parcial da minha janela. Jamais poderei sentir novamente o corpo de uma mulher estremecendo sobre meu peso. Sou leve como o pensamento, estou tão próximo do mundo pervertido das idéias. Estou tão debilitado que durante toda essa conversa, apenas passei do corredor para a tristeza úmida do quarto.
O tempo me fisga com seu membro de aço ejaculando um esperma gosmento, branco e estéril. A velhice é como amanhecer e anoitecer sob o giro alucinante do sol do Alaska.
Na placa do carro preto 8888. Revivo o invento das bombas de napalm da Segunda Guerra. Afundo meus pés, não creio nos submarinos dos sonhadores... Escafandros emergem de repente... Sigo e escuto os galopes... Finalmente avisto os cavalos de Tróia.

domingo, 4 de outubro de 2009

Mosaico de Rancores: capítulo 40

Um anjo caído. Agora era assim que eu me referia a você. O chão sempre foi meu lugar de destaque, mas agora era seu. A vida é de uma comicidade única. Pão e circo todos os dias.Você que jamais precisou de mim, tão seguro de si, absoluto, agora estava ali, a um palmo das minhas minúsculas mãos. Manso e arredio com um homem castrado. Sem poder se movimentar, implorando auxilio de uma doida, de alguém que nunca enxergou a verdade estampada, óbvia, nua, crua e de mau gosto. Sou sua roupa mais incomoda, seu traje de domingo. Mofado. Pode se debater, porém não mudará a ordem perversa das coisas. Escorpiões devidamente verdes percorrem seu sexo e você não é capaz de removê-los. Ainda estou tentando entender como você pode cair do terceiro degrau da escada. Na certa a sua pretensão não pode usar o corrimão. Agora quem me contará cada detalhe idiota dos dias? Cada mudança de nuance de um céu que é sempre cinza? Pipas e balões em dias nublados. O tempo é um espelho enrugado, partido e oxidado. Não tente me provar o contrário com teorias baratas. A tristeza é ausência absoluta de cor. E meus olhos são de um branco leitoso e fosco. E dizem que o branco é o resultado de todas as cores juntas. Não na incongruência homicida dos meus olhos.